Livro e pensamento universitário: construção da editora Difel através da publicação de Jean-Paul Sartre no Brasil (1957-1960)

Livre et pensée universitaire : la construction de la maison d'édition Difel à travers la publication de Jean-Paul Sartre au Brésil (1957-1960)

Resumo

A editora Difusão Europeia do Livro (Difel) foi uma empresa do mercado editorial brasileiro, notavelmente reconhecida por publicar traduções francesas e autores nacionais ligados à produção universitária dos respectivos países. Fundada por Paul-Jean Monteil, no ano de 1951, a editora se desenvolveu na cidade de São Paulo onde se consolidavam importantes instituições de ensino superior para o Brasil. Considerando esta realidade, o artigo irá se concentrar no período de formação da editora e na construção de seu catálogo, enfatizando a iniciativa inédita de tradução dos títulos de Jean Paul Sartre no Brasil. As principais características de realização das publicações, seu contexto editorial e sua inserção na política da editora servirão para definir as condições de intervenção da Difel no mercado brasileiro e também como medidora nos circuitos intelectuais, que inserem o Brasil nos processos da circulação internacional de ideias após a II Guerra Mundial.

Palavras-Chaves: História do Livro; Pensamento Universitário; Traduções; Jean-Paul Sartre; Difel.

 

Résumé

La maison d'édition Difusão Europeia do Livro (Difel) était une société du marché éditorial brésilien, notamment connue pour publier des traductions d'oeuvres françaises et des auteurs nationaux liés à la production universitaire des deux pays. Fondée par Paul-Jean Monteil en 1951, la maison d'édition a grandi dans la ville de São Paulo, où se sont consolidées d'importantes institutions d'enseignement supérieur pour le Brésil. Considérant ces faits, l'article se concentrera sur la période de formation de la maison d'édition et sur la construction de son catalogue, en soulignant l'entreprise sans précédent de traduction des titres de Jean-Paul Sartre au Brésil. Les principales caractéristiques des publications, leur contexte éditorial et leur insertion dans la politique de l'éditeur serviront à définir les conditions d'intervention de la Difel sur le marché brésilien et aussi comme médiateur dans les circuits intellectuels qui insèrent le Brésil dans les processus de circulation internationale des idées après la Seconde Guerre mondiale.

Mots-clefs : Histoire du livre ; Pensée universitaire ; Traductions ; Jean-Paul Sartre ; Difel.

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Fabiana Marchetti

Doutoranda em História

Universidade de São Paulo

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Livro e pensamento universitário: construção da editora Difel através da publicação de Jean-Paul Sartre no Brasil (1957-1960)

Introdução - Mercado Editorial Brasileiro e Edições Universitárias nos anos 1950

          Os anos 1950 marcam um ponto de virada para o mercado editorial no Brasil. Após viver sua “era de ouro” entre os anos 1930-1940, editores tinham de lutar para sobreviver e reivindicar medidas que dessem prioridade à produção nacional em detrimento da retomada das políticas de importações colocadas em prática pelo Estado brasileiro com o fim da II Guerra Mundial (Hallewell, 2012: 544). A situação era tensa, pois o novo fluxo de mercadorias estrangeiras não se fazia nem por demanda do mercado consumidor, tampouco por incapacidade do setor produtivo.

Nestas décadas, a sociedade brasileira viu crescer o seu público leitor devido aos efeitos das políticas de combate ao analfabetismo e à expansão de seu sistema de ensino (Fernandes, 1960; Azevedo, 1958). Esta situação social se conectou com o aquecimento da produção livreira no país que, ao contrário do que se passava a adotar, substituía as mercadorias importadas provenientes dos grandes centros da edição internacional diante das condições colocadas pelas Guerras Mundiais e a Crise de 1929. Desse modo, a época áurea da edição consolidou hábitos de leitura a partir da massificação das edições brasileiras de livros nacionais e também de um mercado que se abriu com obras traduzidas. 

Nesse contexto aparecem as primeiras experiências que tentaram vincular edições e universidade. Destacam-se no setor, as iniciativas das editoras cariocas Companhia Editora Nacional (CEN) e José Olympio com a criação de suas coleções brasilianas: a homônima, Brasiliana, criada pela CEN em 1931; e a Documentos Brasileiros, pela José Olympio, em 1936.  Dedicadas à história e à formação social do Brasil, as coleções não se fundam em função da universidade, mas expressam os projetos de modernização do ensino e as transformações do pensamento brasileiro da época (Franzini, 2006; Pontes, 1988; Sora, 2010). A ideia era disponibilizar obras fundamentais para conhecer a realidade nacional ao  público especializado em expansão, ressignificando justamente a ideia de brasiliana que até então definia as bibliotecas privadas pertencentes a poucos membros de nossa elite intelectual.

Ou seja, o mercado editorial chega aos anos 1950 com um público leitor dinâmico e uma estrutura produtiva desenvolvida, mas é tensionado negativamente por medidas econômicas arbitrárias, decorrentes do alinhamento do Brasil na conjuntura internacional. Os livros importados eram praticamente subsidiados (Hallewell, 2012: 572), retrocendo a dinâmica adquirida e levando diversas editoras à falência. Com algumas exceções, apenas as casas mais tradicionais como José Olympio, CEN, Globo, Martins e Brasiliense conseguiram se manter atuantes. Seus dirigentes tomaram para si o legado do período anterior, organizando-se em entidades corporativas e desenvolvendo seus catálogos para que pudessem contornar a conjuntura econômica negativa.

A cultura de traduções desenvolvida nos anos 1930, muito voltada para o romance policial, vai ser aproveitada como um eixo de publicações deste período. Ela pode ser vista também como um desdobramento do movimento importador, pois as mercadorias que chegavam de fora chamavam atenção e poderiam ser aproveitadas pelas editoras que lutavam para manter a sua dinâmica. Com o fim do conflito mundial se difundia em todo o mundo a chamada literatura de guerra (Simonin, 2008: 11) que será o gênero de destaque para esse novo momento das traduções (Hallewell, 2012: 506-510). Memórias, relatos e romances atingiam os leitores pela dimensão histórica do conflito e também pelas questões políticas que se desdobravam do engajamento antifascista para o contexto da Guerra Fria.

As questões colocadas por essa produção literária conseguiram impulsionar também a tendência de aproximação entre o mundo das edições e o público universitário. No Brasil, o período da guerra foi marcado pela luta contra a ditadura do Estado Novo (1937-1945) e, com seu fim, a politização se dirigia para a construção da democracia no país (Gama, 1998: 90-93). As universidades eram um centro importante de organização, inspiradas pelas referências que vinham dos grupos políticos envolvidos no conflito mundial e, posteriormente, na polarização entre os blocos de países capitalistas e comunistas. A literatura produzida por essas referências eram um ponto de interesse dos estudantes.

Conectadas com a realidade nacional e estrangeira, aproveitando-se da experiência acumulada, as grandes editoras brasileiras demonstraram o amadurecimento do mercado e alguns pontos de sustentação para que novas empresas pudessem surgir em meio às dificuldades. Neste momento decisivo, situamos a história da Difusão Europeia do Livro (Difel), editora que teve de se construir com um projeto viável comercialmente e que fosse, ao mesmo tempo, legítimo diante do público brasileiro. Segundo pretendemos demonstrar, a obra de Jean-Paul Sartre foi um dos caminhos desta construção comercial e simbólica da editora, inserindo-a nas estratégias que outras casas da época vinham adotando para dinamizar suas atividades.

Para desenvolver estas ideias, apresentaremos a importância da referência de Sartre no cenário internacional, situando em que condições se realiza a sua recepção no Brasil no imediato pós-Guerra. Seguimos, identificando os principais títulos do filósofo francês traduzidos pela Difel, a saber, Caminhos da Liberdade (1957-1959), Reflexões Sobre o Racismo (1960) e Questão de Método (1966), e como eles expressam as relações intelectuais, sociais e ideológicas que constroem a Difel e um nicho do mercado nacional a partir das atividades universitárias. Concluiremos refletindo o papel do mercado editorial em conformar um dos condicionantes fundamentais na composição de um sistema universitário brasileiro, o de ser um meio de transmissão de obras locais e estrangeiras entre os profissionais, estudantes e a sociedade em geral.

I. Circulação internacional de ideias no pós-II Guerra, Sartre e o Brasil

          O filósofo francês Jean-Paul Sartre foi uma das principais referências intelectuais do ocidente após a II Guerra Mundial na área das ciências humanas. Seu nome emergiu no cenário internacional com a repercussão dos movimentos da Resistência contra a ocupação nazista na França e o governo colaboracionista de Vichy. A posição de Sartre se tornou mais evidente a partir de 1944, quando ele passou a colaborar para o jornal Combat, ao lado de Albert Camus, atuação que o insere nas ações de escritores e intelectuais resistentes, especialmente no pós-ocupação, e fundamenta a imagem do intelectual engajado que será projetada para o mundo.

Ainda em fins dos anos 1940, esta postura se concretizou e circulou através de suas publicações, com destaque à fundação da revista Les Temps Modernes (1945) e ao livro O Que é Literatura? (1947), ambos com grande repercussão internacional; ao lado deles, a conferência O existencialismo é um humanismo (1946) que demarcou a visão de Sartre dentro da corrente existencialista. Além destes escritos, nesta mesma época, ele escreve um texto fundamental alinhado ao movimento da negritude nas então colônias francesas, o prefácio da Antologia da Nova Poesia Negra e Malgaxe em Língua Francesa (1948), organizada por Leopold Senghor, intitulado “Orfeu Negro”. Nesta reflexão, o filósofo apresentou sua aproximação com as grandes questões do pós-Guerra e do chamado Terceiro Mundo, especialmente o movimento anticolonial.

Essas são algumas das referências que colocaram Jean-Paul Sartre nos circuitos da circulação internacional de ideias (Bourdieu, 2002), enquanto intelectual ligado às questões políticas que lhe eram contemporâneas. Entre o meio de origem e os diversos meios de recepção, o filósofo foi um personagem proeminente de uma França renovada com a experiência da Guerra frente à sua imagem histórica de nação literária e humanista e que, em seguida, teve de se alinhar ao bloco capitalista no contexto da Guerra Fria. Sartre posiciona-se em seu país ao lado daqueles que criticavam a ação oficial e, externamente, como um apoiador dos enfrentamentos às nações hegemônicas neste bloco. 

A história do livro e da edição nos ajudam a compreender parte dos interesses e condições que veiculam as ideias de Sartre pelo mundo. Como uma mercadoria especial, portadora de valor econômico e das elaborações do ‘espírito’ humano (Febvre & Martin, 2017), o livro concretiza tomadas de posição e a produção individual de um autor, ao mesmo tempo, em que expressa escolhas coletivas e relações sociais próprias do processo editorial (Mollier, 1996). Nesse sentido, é preciso considerar que o nome Sartre circula no mercado francês por uma de suas editoras mais importantes e tradicionais, a Gallimard. Esta posição garantiu aspectos de visibilidade para sua obra, abrindo as possibilidades para a aquisição dos direitos de tradução em outras partes do mundo, como foi o caso do Brasil através da Difel.

Antes das edições brasileiras, é preciso sublinhar que a primeira circulação do pensamento de Sartre após a II Guerra no país se fez por artigos e entrevistas publicados em jornais de grande circulação (Caubet, 1998). Algumas destas entrevistas foram produzidas do contato com alguns importantes intelectuais brasileiros do período, como Rubem Braga e Sérgio Milliet que o entrevistaram em 1950. Estes pensadores conheciam a obra sartriana em francês através de notícias esparsas que chegavam através dos grupos políticos e intelectuais do movimento da resistência francesa no exterior e, aos poucos, nos artigos e livros importados que voltavam a circular no país a partir de 1944.

O bloqueio comercial com os países do Eixo e territórios ocupados implicou no corte das importações de livros franceses para o Brasil. A França era o principal fornecedor deste mercado até esse momento (Marchetti, 2019: 121-122) e a ausência de seus livros é muito sentida pelos meios letrados.  Com o fim da guerra, havia uma ânsia pela retomada das relações com esse mercado:

Se é verdade que nós brasileiros não sofremos com nenhuma destruição causada pela guerra, nós não passamos incólumes a um inacreditável abatimento moral. (...) a tomada de Paris foi como uma outra porta do mundo que se fechava. Estávamos acostumados a receber livros e revistas que eram a matéria prima de nosso pensamento, nós nos encontramos subitamente privados de um alimento que sempre nos foi necessário. (...) Felizmente, nós recebemos agora a outra perna, francesa (...). É consolador ver que a velha nação latina soube resistir e preservar sua vitalidade (...) (Moraes, 1945).

As palavras de Rubens Borba de Moraes, intelectual que dirigiu a Biblioteca Municipal de São Paulo (1935-1943) e à época estava à frente da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (1945-1947), evocam a importância das relações Brasil-França através dos livros e outros impressos. Para o bibliófilo paulista, o impacto causado pela suspensão do comércio entre as nações teve uma dimensão destrutiva que deveria ser considerada no balanço sobre o envolvimento do país no conflito. A triste realidade é balanceada com o sentimento de admiração pela resistência da “velha nação latina” em expressão que reforça um discurso de identidade com o Brasil, evocando a matriz linguística que unia aquele país a toda uma América também identificada como latina. Este vínculo esteve em decadência na primeira metade do século XX e foi ressignificado com a repercussão da ação dos grupos resistentes à ocupação nazista (Rolland, 2000). A vitória da França ficou muito associada à defesa de um patrimônio de valores humanistas contra a barbárie alemã, com artistas e intelectuais em sua linha de frente.

Havia, portanto, um novo entusiasmo para a recepção da cultura francesa na sociedade brasileira, no qual a figura de Sartre e seus livros puderam se projetar. De modo mais específico, o filósofo francês era um representante do existencialismo, com formulações particularmente ligadas com a ideia de engajamento intelectual. Esta questão estava na ordem do dia para a intelectualidade brasileira, mobilizando diferentes gerações nos movimentos de reconstrução da democracia após a derrubada do Estado Novo, uma ditadura combatida em termos similares ao combate à barbárie nazifascista e que exigia a reorganização profunda da sociedade. Diante desse contexto, escritores e intelectuais assumiam ações de protagonismo na esfera pública no qual se destacaram os Congressos de Escritores Brasileiros, o primeiro realizado em 1945 e o segundo de 1947.

Um dos primeiros comentadores de Sartre no Brasil foi Sérgio Milliet. Definido como intelectual-ponte entre diferentes gerações intelectuais dos modernistas aos universitários (Atik, 1999: 44; Gonçalves, 1992: 26), Milliet foi um dos protagonistas desses espaços de politização da atividade de escritores e críticos; no início da década de 1940 ele também atuou em uma instituição importante do ensino superior em São Paulo, a Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP). Em seus Diário Crítico, ficam registrados alguns destes comentários sobre Sartre, em 1946, lê-se: “Com Sartre tomamos partido, a favor ou contra. (...). Sartre está sempre presente em seus romances.” (Milliet, vol. IV, 1981: 194). O registro demonstra que Milliet teve contato precoce com os romances sartrianos em língua original e que o interesse na leitura destas obras ficcionais se direcionou justamente na reflexão sobre o sentido da atividade literária, ressaltando os princípios do fazer intelectual que, para além de qualidades estéticas ou narrativas, provocava uma atitude de posicionamento diante do mundo.

A primeira viagem de Sérgio Milliet à França após a II Guerra ocorreu em 1950, justamente na ocasião em que entrevistaria Sartre ao lado de Ruben Braga. O que nos leva a crer que a citação do filósofo em seus diários se fez através a partir da leitura dos livros importados que reapareciam nas vitrines das livrarias brasileiras no movimento de retomada das importações. Se ressaltamos que esta tendência era vista com maus olhos pelo mercado editorial, entende-se, paradoxalmente, que ela foi esperada pelos meios intelectuais, especialmente para se reivindicar a reconexão com a referência francesa.

Outro setor interessado nesse processo era o do comércio livreiro, pois o impacto negativo que as políticas importadoras acarretavam à edição nacional tinha efeito inversamente proporcional para sua dinâmica. Novas livrarias surgiam nos principais centros do país, especialmente em São Paulo, onde Milliet vivia, que se consolidava nesse momento como uma metrópole cultural (Arruda, 2016: 61). A capital vê triplicar o número de estabelecimentos no período com considerável participação das livrarias importadoras (Gonçalves, 2012: 9). Uma delas irá unir as pontas destes circuitos comercial e editorial, integrando-os aos interesses dos círculos letrados paulista, representados por nomes conhecidos como Milliet e Moraes, mas também das novas gerações de pensadores.

Entre os cafés, galerias e lojas da elegante Rua Barão de Itapetininga, no nº 275, encontrava-se a Livraria Francesa, empresa fundada pelo casal Paul e Juliette Monteil, em 1947. Um espaço que rapidamente se tornou uma referência em São Paulo, chegando a mais de 40 mil volumes em estoque no ano de 1951. Além da estrutura que conseguiram construir, os Monteil tinham a legitimidade simbólica de representarem a sua cultura de origem. Através de sua atividade comercial e prestígio, o estabelecimento se tornou também um lugar de encontros, reuniões e vínculos de sociabilidade na capital paulista.

Nestes termos, as relações sociais e os recursos proporcionados pelo livro importado serão precursores da criação da Difel no ano de1951, pois Paul Monteil também será seu fundador e editor. Na livraria, ele conseguiu contato com investidores franceses e uma boa posição no mercado do livro paulista para ampliar suas atividades. Ele seguia um percurso comum a outros profissionais que transitaram do comércio para a edição, sobretudo livreiros que lidavam com mercadorias estrangeiras. Esta atividade os colocava em posição privilegiada para acessar os fornecedores internacionais, adquirir direitos de tradução e reconhecer os títulos mais interessantes para se traduzir e editar em língua nacional. Para realizar a transição entre as atividades livreiras e editoriais, ele concebe uma política editorial para a Difel através da tradução de obras francesas, elegendo os escritos de Sartre entre as obras que compuseram a construção de seu catálogo.

Cumpre ressaltar que esta transição não era apenas econômica, fruto dos investimentos e da circulação das mercadorias, ela é também social envolvendo a referência profissional que Paul Monteil consolidou em São Paulo. O livreiro-editor tinha boas relações intelectuais, inserção institucional junto às universidades e também vínculos com grupos políticos, especialmente com membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e suas dissidências. Esse conjunto era importante para a seleção dos primeiros títulos traduzidos pela Difel, principalmente a produção sartriana que nos interessa, e para a mobilização de profissionais em torno da editora.

Retomando os pontos iniciais desta introdução, Sartre chegava ao Brasil na posição de intelectual engajado, envolvido com a Resistência francesa, com uma produção literária conectada com a literatura de guerra e como referência da filosofia existencialista. Em pouco tempo, ele também propunha um diálogo teórico-político com o marxismo e outras questões fundamentais trazidas pela Guerra Fria, como o colonialismo. O ambiente brasileiro que recebe suas obras contava com círculos intelectuais mobilizados para o engajamento político local, com um histórico de apreço pelos livros, autores e a referência humanista vindos da França. Além disso, o mercado editorial encontrava na tradução de obras estrangeiras um caminho viável para se manter vivo e readquirir uma dinâmica próspera.

Desse modo, Livraria Francesa e Difel integram um ambiente maior de circulação de mercadorias, pessoas e ideias na cidade de São Paulo.  Os projetos que decorrem desses espaços serão mediados pelas condições financeiras das empresas, pelos interesses pessoais de Paul Monteil e também dos grupos e indivíduos que ele foi capaz de mobilizar. Eles partiam da afinidade com o pensamento francês que inundava novamente o mercado livreiro nacional através das importações, ativando circuitos de consumo de livros e debates locais para os quais Jean-Paul Sartre se apresentava como autor incontornável.

II. Entre a literatura e a filosofia: as traduções de Sartre no catálogo Difel

          A retomada dos vínculos com a referência francesa no pós-II Guerra se fazia em um ambiente intelectual mais complexo que em períodos anteriores. Como já mencionado, o público leitor havia se ampliado no país e, no que diz respeito à formação de uma elite intelectual, avançava a renovação do ensino superior iniciada na década de 1930 com a criação das primeiras universidades brasileiras (Azevedo, 1958: 656). A cidade de São Paulo vivia uma realidade particular no contexto nacional com altas taxas de escolarização e concentrando diversas faculdades e universidades.

Quando tomamos Rubens Borba e Milliet como nomes que evocavam a volta do contato com a França, e mesmo com Sartre, reconhecemos uma parte deste público potencial a quem a Difel poderia se dirigir. Uma parte fundamental, pois eram críticos, dirigentes de instituições culturais, professores e formadores de opinião, no entanto, é preciso reconhecer que as gerações mais jovens ditavam uma nova dinâmica para o mercado. Quantitativamente, engrossavam as estatísticas da população letrada, representando um volume de consumo para as edições; de modo qualitativo, possuíam um novo tipo de formação, sobretudo, nos níveis mais especializados. As escolhas dos autores e títulos que entrariam no catálogo da editora passava por compreender essas duas dimensões do público a quem se dirigia.

O primeiro título de Jean-Paul Sartre sai pela Difel no ano de 1957, trata-se de "A Idade da Razão", volume inicial da trilogia "Caminhos da Liberdade"; os títulos seguintes, "Sursis" e "Com a Morte na Alma", saem, respectivamente, em 1958 e 1959.  Outros livros do filósofo são publicados até o ano de 1966, passando por textos teóricos "Reflexões sobre o Racismo" (1960), "A Imaginação" (1964), "Questão de Método" (1966); pela obra autobiográfica "As Palavras" (1964), e duas peças teatrais "O Diabo" e "o Bom Deus" (1965) e "As Troianas" (1966). A evolução na categoria dos títulos escolhidos segue uma lógica interna ao desenvolvimento do catálogo da editora.

Ao iniciar as traduções de Sartre com a obra literária Caminhos da Liberdade, a Difel apresentava o filósofo-escritor em meio a um catálogo que já contava com outros autores da literatura de guerra produzida na Resistência Francesa: Vercors, Camus, André Gide, André Malraux e Antoine Saint-Éxupéry. Com eles, a editora soube aproveitar o movimento de traduções que agitou o mercado editorial brasileiro no imediato pós-Guerra, mas a publicação de Sartre permitia que a editora desse um passo além do gênero literário, dirigindo-se à filosofia que era notavelmente um pilar dos romances sartrianos. Nos jornais brasileiros, as notas de divulgação das traduções realizadas pela Difel e as resenhas críticas destacam justamente a dupla natureza da obra com termos como romance existencialista e literatura existencial[1].

As observações sobre qualidade literária dos livros valorizavam também a representação da realidade e de situações contemporâneas que ressaltavam o sentido da ação humana, das possibilidades e escolhas que os homens e mulheres comuns deveriam tomar diante do mundo. Um interesse que remete aos primeiros comentários sobre Sartre como a leitura crítica que citamos nas palavras de Milliet que, não por acaso, será o tradutor dos três volumes.

Sob a marca do existencialismo os títulos que sobrepunham literatura e filosofia, possibilitando que o catálogo da Difel atingisse de modo concomitante duas categorias de público: uma mais ampla, constituída por leitores interessados em obras ficcionais com a referência de um escritor renomado; outra mais restrita, composta por leitores que buscavam a referência do filósofo e do debate que ele propunha com suas ideias.

Figuras 1 e 2 Primeira edição de A Idade da Razão

Capa de Jean Guillaume, artista francês que migrou para o Brasil após lutar na II Guerra Mundial e trabalhou em diversas edições da Difel. Os volumes II e III seguem o mesmo projeto gráfico. À direita, destaque para o tradutor Sérgio Milliet.

Este passo em direção à filosofia nos leva coloca alinha as edições de Sartre com outro setor do catálogo da Difel, o universitário. Desde 1954, a editora publicava os volumes da coleção de bolso “Que sais-je?”, traduzida como “Saber Atual”; em 1955 saía também o primeiro volume de História Geral das Civilizações, ambas das Presses Universitaires de France (PUF). A filosofia existencialista que, como já se viu estava presente nos meios letrados do país e na imprensa, interessava também a uma vanguarda intelectual universitária. As universidades concentravam uma base de jovens estudantes organizados politicamente, com grande atuação de grupos comunistas e trotskistas. A Faculdade de Filosofia da USP, por exemplo, era conhecida como a vermelha (Gama, 1998: 93) pelo histórico de lutas que vinha desde as manifestações contra o autoritarismo de Vargas, estendendo-se ao longo da década de 1950 no espírito de reconstrução democrática do país.

Sartre era o intelectual francês que, por excelência, representava o sentido de uma atuação intelectual engajada, como temos afirmado. Essa característica é explorada na composição paratextual do livro (Genette, 2009). Em A Idade da Razão, lê-se:

Como um homem estreitamente ligado aos acontecimentos que o circundam, Jean-Paul Sartre jamais deixou de refletir em sua obra essa condição de escritor e filósofo profundamente ligado aos problemas da sociedade e do indivíduo de sua época. (Difel, 1957)

A trilogia Caminhos da Liberdade seria uma boa porta de entrada para a atitude de Sartre e sua filosofia engajada ao tratar de modo ficcional o conflito entre a posição do indivíduo e o destino da humanidade através de eventos fundamentais de um período anterior, onde as polarizações ideológicas estavam presentes e diante de muitas omissões, e permissões, levaram à ascensão do nazifascismo e à II Guerra Mundial – a Guerra Civil Espanhola, o Acordo de Munique e, finalmente, a ocupação da França. As narrativas eram um atrativo para o contexto brasileiro, reforçadas pelo sucesso do romance que repercutia mundialmente frente aos milhares de exemplares vendidos na França[2].

Impulsionada por suas obras e posicionamentos políticos, a figura de Sartre se amplia no cenário internacional. O apoio à independência da Argélia é um ponto de inflexão que o conecta com um tema sensível à sociedade francesa e serve para criar empatia com o chamado Terceiro Mundo, junto do seu entusiasmo com a Revolução Cubana e o aprofundamento nas polêmicas marxistas. Esse conjunto de eventos em torno de Sartre não permitiriam que a Difel parasse na publicação de seus romances. A recepção do filósofo se aproximava cada vez mais dos leitores especializados, especialmente, da juventude universitária que, como já se mencionou, assumia o espírito do engajamento para sua formação e a postura do filósofo representava a práxis.

Não era apenas o estudante de filosofia ou literatura que se interessavam por Sartre, mas também de história, sociologia, cinema, teatro e outras disciplinas, fato que fica marcado na organização de sua vinda ao Brasil no ano de 1960. Os jovens de diversas universidades do país, ao lado de outros intelectuais renomados, serão responsáveis por organizar atividades e ciceronear Simone de Beauvoir e Sartre em sua viagem, acompanhando avidamente suas atividades (Almeida, 2009).

O convite inicial é feito pelos estudantes da Faculdade do Recife para participarem do I Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, realizado em agosto de 1960 naquela capital. Contudo, o ensejo permitiu a organização de uma estadia de dois meses, levando o casal a diversas capitais brasileiras onde proferiram entrevistas e conferências. Eles ficam em São Paulo entre os dias 2 e 7 de setembro, dividindo-se entre a capital e a cidade de Araraquara. José Roberto Salinas Fortes que naquela época era estudante de filosofia na USP, relembra:

(...) para muitos de nós, jovens brasileiros que mal fraqueáramos a fronteira dos vinte anos, era a ocasião única para um contato imediato com esse fascinante personagem ao mesmo tempo tão familiar, já que há muito nos iniciava no difícil exercício do pensamento, e tão distante parecendo mesmo provir de dimensão outra. Sempre acolhido por multidões de universitários curiosos e entusiasmados (...). (Fortes, 1986)

O depoimento registra um ambiente em êxtase para acolher uma verdadeira estrela da intelectualidade internacional. O sentimento de adoração se misturava com certa intimidade em relação ao seu pensamento que, pelas memórias de Fortes, eram lidos e conhecidos pelos jovens universitários. Esta sensação de proximidade também aguçou a ousadia da juventude que não teve pudores em levantar questões provocativas. Sartre e Beauvoir chegavam ao país vindos de Cuba o que incentivava ainda mais a intelectualidade local a debater política. Sendo assim, os temas mais abordados pelo público se referiam à Guerra Fria, às guerras de libertação nacional e revoluções contemporâneas o que se verifica pela repercussão de sua viagem na mídia, como nestas manchetes: “Sartre chega a Recife e responde com sorriso a uma pergunta sobre Cuba”[3]; “Sartre ao Correio da Manhã: O fenômeno mais importante do século é a libertação dos povos coloniais”[4].

Sua fala sobre filosofia se cristalizou na famosa pergunta enviada ao congresso recifense pelo professor Fausto Castilho da Faculdade de Filosofia de Araraquara. Castilho questionou Sartre sobre o livro Crítica à Razão Dialética, motivando-o a incluir a cidade do interior paulista em seu roteiro de viagem, propondo-se a responder com uma apresentação específica sobre o tema. A Conferência de Araraquara ficou conhecida como a única em que discutiu filosofia, mas como não poderia deixar de ser, seu conteúdo polêmico envolvia a práxis marxista, desse modo, a fala foi ouvida entre faixas de “Viva Cuba! Viva Sartre” (Fortes, 1986).

É justamente no ano da viagem que a Difel irá publicar o primeiro livro com textos teóricos do filósofo francês, Reflexões sobre o Racismo. A obra apresenta dois textos publicados na França de forma separada: o primeiro, Reflexões sobre a Questão Judaica, editado pela P. Morihein, em 1946, e pela Gallimard, em 1956; o segundo, Orfeu Negro[5], que saiu como prefácio da antologia organizada por Léopold Senghor, editada pela PUF em 1947.

O eixo encontrado para unir os dois textos foi o racismo, escolha que parece natural quando observamos a edição pronta. No entanto, a composição deste livro inédito não deve ser entendida como fruto do acaso, mas sim de uma intervenção organizada dos interesses do meio intelectual foi produzido. Os profissionais envolvidos na edição brasileira realizam uma operação que se inicia na seleção dos respectivos textos, a partir do reconhecimento dos debates locais e do interesse que seu conteúdo suscitaria junto ao público. Sua unidade se realiza em sua concepção material (Mckenzie, 2018) que compreende a escolha e apresentação do título, posicionamento de paratextos e no projeto gráfico.

Figuras 3 e 4 Primeira edição de Reflexões sobre o Racismo

Outra capa de Jean Guillaume, destacando a estrela de Davi que remete à comunidade judaica e fora utilizada como signo de perseguição aos judeus sob o nazismo. À direita, destaque para a tradução de Jacó Guinsburg

Desde os anos 1940, a questão racial foi um tema determinante para o desenvolvimento da pesquisa universitária no Brasil, sobretudo em São Paulo, onde a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP e a Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) estruturavam os primeiros cursos de pós-graduação no país (Micelli, 2001; Peixoto, 1991). Essa produção intervinha no repertório das histórias e ensaios que tratavam da contribuição das raças no processo de formação social brasileira. Os trabalhos realizavam levantamentos quantitativos e qualitativos sobre a posição da população negra em diversas localidades do país e, com perspectivas distintas de análise, levantavam novas polêmicas sobre racismo e desigualdade. O tema permaneceu como objeto de estudo de pesquisas na área de sociologia, antropologia, história durante toda a década de 1950 e 1960 o que nos ajuda a compreender a escolha do corpo editorial da Difel em produzir essa edição inédita.

Promover um livro de Sartre sobre o racismo, às vésperas de sua vinda ao Brasil, propunha questões para esse público especializado. Os dois textos de Sartre tratam, respectivamente, da população judaica europeia e da população negra explorada pelo colonialismo francês. Ambas estavam presentes no contexto local, com maior destaque para a segunda, pois o racismo e a condição da população negra eram discutidos sob a perspectiva crítica de uma sociedade fundada sobre o legado da escravidão e da exploração colonial na América. Estes problemas sociais permitiam que os intelectuais brasileiros integrassem o repertório crítico sobre a experiência e o destino dos países do Terceiro Mundo produzido naquele momento, por compartilharem das consequências do colonialismo em suas diferentes formas.

Desta maneira, se a questão judaica era uma reflexão necessária, especialmente após a II Guerra, ela adquiria maior profundidade ao lado da questão negra. Apresentadas juntas, em um livro, as análises reforçavam mutuamente, sem deixar de lado condições particulares de cada uma, e afirmando a elaboração sobre o racismo como um fenômeno complexo. Com a vinda de Sartre ao Brasil, Questões sobre o Racismo esteve nas listas de livros mais vendidos no ano de 1960[6]. A circulação se manteve intensa nos anos seguintes, pois em 1963 o livro contava com sua 3ª edição. O sucesso permitiria à Difel pensar em novas publicações de Sartre que se encaixassem nesta categoria, contribuindo para construção de seu catálogo no setor universitário.

Seguimos em nossa análise com o livro Questão de Método, publicado em 1966. Mesmo sem ter sido traduzido ao português, ele fora objeto da conferência realizada por Sartre em Araraquara, pois na França ele sai publicado como parte do livro Crítica à Razão Dialética (Sartre, [1960] 2019). Tratava-se, portanto, de um escrito conhecido do público brasileiro e que repercutiu com a viagem do filósofo no país. A obra marcou o posicionamento de Sartre sobre o marxismo e o materialismo histórico e ingressou nas leituras universitárias através de grupos e seminários formados em fins dos anos 1950.

Na USP alguns desses universitários se reuniam desde 1958 no que ficou conhecido como Seminário Marx (Rodrigues, 2012). O intuito dos estudantes e jovens professores era pensar o materialismo dialético enquanto método científico, a práxis que envolvia o trabalho intelectual e, além disso, pretendia-se superar as leituras mecânicas de Marx realizadas pelas organizações políticas.  Ao lado d’O Capital e outros textos de Marx, o grupo debateu obras de Lukacs e Sartre. Estes autores polarizaram as posições de seus membros que tinham em Bento Prado Jr., estudante de filosofia, o grande defensor do pensador francês. O grupo do seminário também contava com diversos frequentadores da Livraria Francesa e alguns deles se aproximaram de Paul Monteil e da Difel, envolvendo-se com as publicações da editora, como foi o caso de Bento Prado Jr na realização do título de 1966.

Figuras 5 e 6 Segunda edição de Questão de Método

 Não encontramos a primeira edição do livro. Nota-se que o projeto gráfico reproduzido é o mesmo de outras obras de filosofia no catálogo, como a segunda edição de Reflexões Sobre o Racismo, atribuindo certa unidade a este setor do catálogo. Marianne Perreti será a responsável pela mudança. À direita, destaque à tradução de Bento Prado Jr.

A edição foi lançada dois anos após o início da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Esse contexto reforçava a referência política de Sartre e a necessidade de repensar o uso do marxismo como teoria para interpretar e intervir na realidade brasileira. O grupo de estudos uspiano se ‘refunda’ em 1964 sob essa perspectiva (Schwarz, 2017: 17), pois os caminhos para a entrada do marxismo na universidade ficavam mais difíceis com o avanço do regime ditatorial, ao mesmo tempo seu sentido se tornava cada vez mais necessário.

Nesse sentido, quando decidem traduzir e publicar Questão de Método, os responsáveis pela Difel não executavam apenas um projeto de continuidade das obras de Sartre em seu catálogo, senão que reafirmavam uma linha editorial universitária alinhada com a perspectiva de intervenção social proporcionada pelos temas, pesquisas e relações desenvolvidos na universidade. O histórico positivo de Sartre nesse projeto era, sem dúvidas, indicador de uma boa aposta comercial, entretanto, escolhia-se divulgar o conteúdo de uma teoria crítica, reivindicada pelos membros da comunidade acadêmica e com potencial politizador. Em um contexto repressivo, a editora assumia os riscos de um enfrentamento cultural e ideológico através dos livros em prol de determinados princípios de sua atuação.

Finalmente, não poderíamos falar das traduções sem falarmos dos seus tradutores.

Sérgio Milliet, crítico literário e intelectual renomado nos anos 1950, foi o tradutor de Caminhos da Liberdade. Além de ser um tradutor conhecido, com apelo para o público, ele era um dos poucos intelectuais brasileiros que tinham estado pessoalmente com Sartre, como já mencionamos. As leituras registradas em seu diário crítico coincidem com o período de sua atuação como professor de na ELSP em reflexões em que ele discute a sociologia (MILLIET, 1981). Uma trajetória respeitável, ligada ao nome do filósofo francês que atribuía legitimidade à tradução. Jacó Guinsburg traduziu Reflexões sobre o Racismo, um jovem intelectual de origem judaica, trabalhava no quadro fixo de funcionários da Difel e se tornaria professor da Escola de Artes Dramáticas (1964-1967) e da Escola de Comunicação e Arte da USP (1967-1991) na área de crítica teatral. Jacó possuía uma atuação central na condução dos trabalhos editoriais da Difel e traduziu diversos títulos importantes; nesta edição, ele acabava representando um dos grupos envolvidas no tema racial, além de ser um nome com relações e boa circulação entre os universitários. Bento Prado Júnior traduziu Questão de Método e trouxe o vínculo mais explícito entre Sartre e a comunidade universitária: o filósofo uspiano fora integrante do seminário Marx e era, como dissemos, um defensor do intelectual francês entre colegas e alunos.

O grupo reflete a mobilização que Paul Monteil fizera entre os intelectuais que viviam em São Paulo, buscando engajar prioritariamente aqueles que estivessem ligados à universidade:

(...) o Monteil era uma pessoa que ousava pegar gente jovem, relativamente desconhecida, e dava responsabilidades. E ele se utilizava de outro recurso, ele nos pagava. Embora o salário da Universidade naquela época fosse razoável, comparativamente, sempre é bom um pouquinho mais, ele pagava por livro publicado, por tradução feita. (Cardoso, 2019)

Para além da ação do editor, os tradutores participam do processo editorial que constrói as publicações brasileiras de Sartre, atribuindo-lhes sentido e/ou legitimidade em seu novo destino. A perspectiva profissional dos projetos, que Fernando Henrique Cardoso destaca ao falar da remuneração, não deve ser vista apenas com o sentido imediato desta necessidade material, mas como expressão de relações profissionais que surgem do ambiente universitário e atingem o mercado editorial sem planejamento. As universidades não tinham editoras próprias nesse momento, logo, os projetos que interessavam a alunos, professores e pesquisadores ficaram nesta época à mercê da sensibilidade e interesse das editoras comerciais. Diante das condições de sua fundação, a Difel é uma das editoras que assume essa atitude precocemente.

Conclusão - Difel e Sartre, apontamentos sobre a difusão do pensamento universitário brasileiro

          Em um contexto de tensões socioeconômicas para o mercado editorial, a Difel surge no ano de 1951 como uma novidade. A editora é criada em São Paulo por Paul Monteil, livreiro de origem francesa, que soube construir relações na cidade, beneficiando-se de condições que possibilitariam um direcionamento bem sucedido de usas atividades para o setor editorial. Neste lugar, foi possível traçar um projeto de edições no qual Sartre figurou como um nome viável e necessário. Suas obras estabeleceram um bom ponto de partida em um ambiente intelectual impactado pela literatura de guerra, passando pelo debate racial que tocava às pesquisas universitárias no contexto de reconstrução da democracia brasileira pós-Estado Novo, até chegar a um título de caráter especialmente politizador diante do revés representado pela instauração da ditadura no país.

Editar o filósofo francês, da literatura e à filosofia, significava mediar a recepção de um nome de grande circulação internacional, com um capital simbólico e comercial respeitável em um meio de produção intelectual que se ampliava com políticas de expansão do ensino, e se dinamizava pela consolidação das instituições universitárias. Ao lado de outras ações editoriais, Sartre compôs as escolhas da Difel para construir um perfil politizado e voltado a esse novo sistema de pensamento e produção intelectual.

Os títulos escolhidos, a concepção e o contexto em que foram produzidos podem ser tomados como um exemplo da evolução de um projeto amplo para o mercado editorial e a cultura. A trilogia Caminhos da Liberdade demarca a forma com a qual a Difel se utilizou da literatura de guerra para adentrar nas estratégias de sobrevivência de um mercado em crise no início dos anos 1950, transitando para um setor incipiente e inovador de edições voltadas a disciplinas universitárias, como a filosofia. Em seguida, Reflexões Sobre o Racismo trazem um conteúdo teórico não-ficcional conectado com os principais debates sobre a formação social brasileira em sua conexão política com questões internacionais defendidas por Sartre e trazidas por ele em sua visita ao Brasil. Por fim, Questão de Método avança ainda mais no pensamento filosófico do autor em uma edição que explicita o vínculo da editora com o ambiente da universidade e propõe uma contribuição para renovar uma metodologia crítica de análise social e da práxis.

Cada um dos livros se realiza por uma convergência de múltiplos interesses, os editoriais que visavam construir uma empresa e os intelectuais, que mesclavam as pretensões do editor e suas relações com outros membros dos meios intelectuais paulistanos, sobretudo, o universitário. A emergência da universidade como instituição formadora de especialistas e produtora de conhecimento despertou demandas de leitura, debates e a necessidade de seus membros de criarem canais de diálogo e se expressarem ao público.

Essa dinâmica pode ser entendida segundo os critérios que Antonio Candido estabeleceu para a definição de um sistema literário brasileiro. Para ele, a conformação de um sistema exige três denominadores o dos “produtores (...) mais ou menos conscientes do seu papel” e seus “receptores (...) formando os tipos de público” e “um mecanismo transmissor”, estabelecendo “um novo tipo de comunicação inter-humana” (Candido, 2014: 23-24), sobre a qual acrescentamos, desenvolve-se uma nova forma de pensamento, um pensamento universitário. Em um momento de formação, entendemos que esses denominadores oscilam em seus vínculos com a instituição que ainda não possui uma estrutura totalmente definida. No caso brasileiro, o mecanismo transmissor talvez fora o último a se integrar nessa rede de relações.

Diante disso, o livro, ou a produção livreira, pode ser visto como parte dessa esfera que realiza a comunicação entre os membros do sistema. Outrossim, a inexistência de editoras oficiais duas décadas após a fundação das primeiras universidades do país deixou um universo de pensamento em aberto para a atuação de empresas comerciais que captaram, a partir de suas velhas práticas, a novidade que estava surgindo - das demandas de leitura à necessidade em projetar um savoir-faire, um autor ou uma teoria.

Compreender a edição da obra de Sartre na Difel nos ajuda a recompor partes desse processo: o papel do setor de traduções no nascimento de uma editora, na mobilização de profissionais e de um público novo; a necessidade de se formar um circuito da recepção de ideias estrangeiras frente ao crescimento da produção local; os critérios de seleção de títulos e temas de discussão; o envolvimento de diferentes categorias profissionais na configuração de um setor do mercado editorial e, por sua vez, do pilar de um sistema de pensamento.

Notas de fim

[1]Existencialismo em livros”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28 de agosto de 1958. p. 8 Disponível em:  http://memoria.bn.br/DocReader/030015_07/91877

[2] No catálogo da Bibliothèque Nationale de France verifica-se a 105ª edição do primeiro volume e a 113ª do segundo volume, respectivamente em 1950 e 1951.

[3] “O fenômeno mais importante do século”. Corrreio da Manhã, 16 de agosto de 1960. Disponível em : http://memoria.bn.br/DocReader/089842_07/8695.

[4] “Sartre chega a Recife”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1960. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/8639

[5] Havia uma referência importante ao texto na produção cultural brasileira antes de sua publicação: a peça homônima de Vinícius de Moraes escrita em 1954 e encenada dois anos depois pelo Teatro Experimental do Negro no Municipal do Rio de Janeiro. A peça virou filme, de produção franco-brasileira, com estreia em 1959. Os enredos são totalmente inspirados na referência de Sartre ao mito de Orfeu, mais uma prova de sua inserção na vanguarda cultural do país, em setores ligados à universidade e extremamente politizados.

[6] “Os mais vendidos de 1960”. Correio Paulistano. São Paulo 01 de janeiro de 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=090972_11&pagfis=5387.

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Pour citer cet article

Fabiana Marchetti, "Livro e pensamento universitário: construção da editora Difel através da publicação de Jean-Paul Sartre no Brasil (1957-1960)"RITA [en ligne], n°15 : décembre 2022, mis en ligne le 02 avril 2023.