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 Civilizar a embriaguez: notas sobre os usos do álcool na América Portuguesa.

Fruto de uma pesquisa que estuda o processo de agenciamento dos sujeitos sob efeito do álcool na América Portuguesa setecentista, o artigo apresenta uma reflexão a respeito do processo civilizador que incidiu sobre as experiências etílicas na América portuguesa...

...Tanto os padres quanto as autoridades coloniais procuraram esquadrinhar os usos do álcool dos índios, negros e desvalidos na sociedade luso americana ao longo de todo o século XVIII através de estratégias de repressão aos comportamentos alcoólicos destoantes do padrão de sociabilidade necessário ao funcionamento da colonização. A proposta é de fazer um exercício de apontamento da tendência hegemônica de confiscação da ebriedade pelos agentes responsáveis pelo bom andamento da exploração colonial.

Palavras-chave: Processo Civilizador; Embriaguez; América Portuguesa
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Lucas Endrigo Brunozi Avelar

 

Mestrado em História Social

Universidade de São Paulo

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Civilizar a embriaguez:

notas sobre os usos do álcool na América Portuguesa
 

Introdução

A organização de uma sociedade adequada para cumprir os desígnios da colonização exigiu que os grupos indígenas aqui estabelecidos fossem praticamente devastados por servirem de mão-de-obra nas lavouras de trigo da capitania paulista até o final do século XVI. Correndo o risco de fazer generalizações apressadas ou ser catastrofista, nos parece cabível supor que esta condição imposta aos indígenas luso-americanos foi uma constante em todo o território sob domínio português na América: aqueles que estivessem nas “zonas de expansão” eram erradicados por guerras e apresamento para o trabalho forçado ou seriam convertidos ao cristianismo nos aldeamentos missionários. Aos que coube este segundo “destino”, notamos o desenvolvimento de um processo de confiscação de suas experiências etílicas por meio da atribuição de certo significado ao ato de se embebedar.

É o que se verifica na carta de novembro de 1750 endereçada à rainha de Portugal, D. Maria Ana de Áustria, esposa de D. João V, em que o remetente João Brawer, padre alemão da Companhia de Jesus desde 1737, após reconhecer a “natural inclinação e amor” que a rainha dispensa à Companhia, noticia o que de fato lhe aflige na aldeia de Ibiapaba, no Ceará, de onde observa o que segue:

“[...] uma coisa devo ainda lembrar à Vossa Majestade sobre esta Missão, e é que foi introduzida aqui, este ano, e se introduz ainda cada dia, grande quantidade de aguardente; esta bebida não só rouba aos índios quanto têm– até vestidos e os mais com que se cobrem chegam a vender para comprá-la – mas é fonte de muitas outras desordens, pois com ela perdem os índios de todo o pouco juízo que têm, e é bem de ver que neste estado pelo mais fútil motivo  se ferem e matam uns aos outros, como ainda a poucas semanas aconteceu, havendo até quem, na embriaguez, vibrou a si próprio umas poucas facadas no ventre” (1750: 2).

Por conta disso, o padre requisita da rainha a solução do problema, que lhe parece insolúvel. A sugestão é que se envie um visitador para fiscalizar o comportamento dos indígenas e coibir aquela “adversidade”. De fato, a intenção do texto é alertar e pedir ajuda à rainha para que ela resolva o problema da “bebedice” na referida missão. Disso desprende-se que a Coroa também tem interesse e responsabilidade com os indígenas, que os efeitos da embriaguez por aguardente não são controlados pelos padres e que entrada recente da bebida na aldeia - pelas mãos de quem não se sabe - e sua oferta freqüente geram problemas no processo de catequização. Surge este problema que escapa e requer ajuda Real. Mas qual é então sua natureza? De modo geral, tentaremos neste artigo atacar o problema tendo em vista que houve um choque de experiências etílicas quando da colonização, cujos resultados estamos investigando e que nesta ocasião fazemos apontamentos iniciais. Para isso, há de se considerar que entre os colonizadores, o padrão normal era dado pelo uso regular e moderado da bebida alcoólica, sendo portanto a embriaguez signo de desvio e irregularidade de conduta. Já para os ameríndios, embriagar-se representava virilidade e poder, tolerava-se então o uso esporádico e excessivo de álcool. Deste modo, o que se pretende por ora é apontar brevemente as coordenadas gerais deste embate travado nos trópicos. Outro esclarecimento necessário deve ser feito no que tange ao significado do termo central que organiza esta reflexão, qual seja, o de “processo civilizador”. Na esteira de Norbert Elias, referimo-nos ao conjunto de transformações dos níveis tecnológicos, dos tipos de maneiras, de idéias religiosas e filosóficas e de costumes que exigem um maior recalcamento das pulsões do homem, que se impõe através, sobretudo, da monopolização da forca física e da complexificação social geradores de automatismos que instilam o aumento do auto-controle dos indivíduos (Elias, 1994). Importante lembrar que este processo tomou cores especificas nos trópicos e incidiu não só sobre todos os agentes envolvidos na colonização, apesar dos jogos de escalas.

I. Um passo atrás...

Antes da chegada da esquadra cabralina nos trópicos e bem depois dela as sociedades indígenas organizavam-se tendo como um de seus elementos o uso ritual de bebidas alcoólicas. Lembremos que a embriaguez detinha uma função específica no interior daquelas sociedades, participando de festas, casamentos, funerais e até dos espaços de decisão política. Enquanto manifestação da vida social dos povos tupinambá, as cauinagens funcionavam como uma espécie de “passe livre” que permitia a transgressão isenta de punições. O cauim era um fermentado de mandioca produzido pelas mulheres das tribos. Segundo Oswaldo Gonçalves de Lima, o fenômeno bioquímico ocorrido para a produção do cauim tinha características de um ato mágico, “tanto pelo inusitado ato de um ‘fervido a frio’, como pela emissão misteriosa de dióxido de carbono e também pela mutação operada no gosto” (Lima, 1990: 317). Tanto que nas sessões de cauinagem algumas iniciativas consideradas delituosas eram toleradas, como brigas entre guerreiros da mesma tribo e ateamento de fogo às malocas. Pelo contrário, “os indivíduos que cometiam o maior número de ‘desatinos’ subiam mais nas estimativas e na consideração dos companheiros”, dotando este estado permissivo da importante função de conservar o equilíbrio psíquico dos indígenas, conforme nota Maria Gloria Kok ao estudar os processos de sociabilidade das tribos indígenas do Brasil alheias ao contato com os colonos lusitanos (Kok, 2001: 84-87). Tais sessões eram no mais das vezes oferecidas pelos homens que alcançavam prestígio a partir de sua proficiência na guerra e de sua habilidade política, denominados “principais”, que deveriam dispor de grande quantidade de bebida e comida como forma de cimentar relações de dependência com os mais jovens de seu grupo local e como forma de travar contatos com jovens de outros grupos. Seguindo Kok, é plausível supor que esses “principais” fossem os responsáveis pelo “rito de passagem” para a vida adulta expresso pela iniciação etílica dos jovens, por isso serem de sua responsabilidade distribuir o cauim produzido pelas mulheres da tribo. Portanto, o caráter redistributivo das bebidas servia como um meio de reforçar os laços de amizade e a coesão grupal bem como de cimentar alianças, sempre fluidas, tendo-se em vista a ausência de classes ou sistemas hierárquicos rígidos entre estes povos (Fernandes, 2004: 103).

 

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II. O esquadrinhamento da experiência etílica.

                   Como se nota, a carta aponta para uma situação nova em que ao menos nas missões as cauinagens foram suprimidas, todavia a entrada da aguardente reativava comportamentos que os estados de transe provocavam. Talvez não seja demasiado supor que estaríamos diante da emergência de novos padrões de sociabilidade em torno do álcool vigentes desde o início do século XVIII do qual não mais saímos: a embriaguez ocorrerá também em espaços privados como engenhos, missões, tavernas, além dos quilombos, festas, etc. No caso dos índios beberrões podemos inferir que o uso do álcool nas “reduções” jesuítas expresse uma resistência daqueles agentes à condição imposta pelos padres - nesse contexto ocorre a prática do suicídio, algo que também se nos afigura como novo na paisagem social da colônia, fruto da situação imposta aos indígenas. Esquematizemos então quais os meios utilizados pelos agentes da colonização para “civilizar” a experiência etílica na sociedade luso-americana.

Vale ressaltar que os combates em torno do álcool eram travados de acordo com o palco em que se posicionavam os atores. Na capitania mineira, por exemplo, a tensão da disputa pode ser reconstituída de modo fragmentário na medida em que se depara com a súplica de janeiro de 1738, do rendeiro Francisco Machado de Souza, morador de Ouro Fino, informando que
“dando ontem licença a um seu escravo, por nome Thomas Mina, para vir ser padrinho de outro escravo novo, vindo com efeito e sendo costume entre eles, no dia do batizado fazerem sua festa que consta de alguma cachaça para os que acompanham, dada pelo padrinho e madrinha, sucedendo o escravo do suplicante vir comprar a cachaça, e encontrando-o os oficiais da Almotaçaria, o prenderam na cadeia donde se acha, sendo os mesmos oficiais a quem o mesmo escravo disse antes que vinha buscar a cachaça para a dita festa e porque nunca foi acostumado a semelhantes contrabandos, nem os bandos publicados parece se deve nos termos”  (1738: 1)

De início, ressaltemos que o rendeiro tem prestígio social para se dirigir ao Rei ou a alguma autoridade colonial bem como o direito de interceder em favor de seu escravo. Para o que estamos tentando detectar, a saber, as relações sociais mediadas pelo álcool e seus padrões de sociabilidade, a fonte informa que havia relações de compadrio entre os cativos mineiros e que eles não eram beberrões, diferente do que informa Antonil respeitante aos escravos do engenho por ele examinado. Além disso, o costume de ofertar “cachaça” entre os negros das Minas aponta para investimentos que reforçam laços de solidariedade. A bebida podia ser adquirida por quem tivesse uma mínima parcela de dinheiro e, como a fonte indica, ela era fornecida aos amigos a ponto de garantir algo a mais do que a simples ingestão da bebida, como tudo aquilo que está em volta do ato, que neste caso, é a festa, o encontro comemorativo que possibilitava a troca de informações e idéias. Parte da dimensão deste ato pode ser medida se considerarmos que nesse período o problema do abastecimento de alimentos era grave nas minas, tanto é que se dizia mais fácil alforriar um escravo, e muitas vezes deixá-lo morrer na miséria, do que alimentá-lo. Por isso, a aguardente de cana servia inclusive como incremento alimentar que se conseguia das “negras de tabuleiro” ou nas vendas, que é de onde parece ter comprado o escravo da fonte acima, pois ele foi em lugar específico para adquirir a bebida, do que podemos inferir que havia disponibilidade regular do produto (Scarano, 1994: 68). No entanto, vale destacar que o casal de escravos foi preso por irem com a bebida a uma festa com a anuência do seu senhor. Vale lembrar que o álcool nas festas fornecia estímulos para dar vigor aos cânticos, estreitar laços de amizade e, no limite, abria o espaço para combinar levantes ou preparar fugas. Por sugestionar esses elementos, o documento nos aponta para a ambigüidade de costumes que marcava as práticas relativas às bebidas alcoólicas no século XVIII mineiro, conforme nos alerta Julita Scarano. Para ela, havia dois lados da percepção do álcool no período: se em certas ocasiões ele era bom, curativo lucrativo e valioso presente para pagar favores ou trabalhos recebidos, por outro lado, viam-se malefícios no seu uso abusivo, como desvio de metais e de mão-de-obra para trabalhar nas engenhocas, queda na venda de bebidas do Reino, além de perturbação do “sossego público”, gerando apreensão e temor das autoridades de uma sociedade em que a população de negros e mulatos ultrapassava em muito a de brancos, como era a sociedade mineira setecentista: portanto, a perseguição aos vendedores e bebedores era por razões políticas, de controle econômico e de ordem pública.

Desse modo, a crença nos poderes curativos atrelada a queixas e investidas sobre a embriaguez dos desvalidos da colônia, a nosso ver, expressa as linhas de força que compõem a tensão para se estabelecer um uso moderado do álcool na América Portuguesa setecentista: fruto da pressão vinda de senhores, padres, médicos e cirurgiões e de autoridades de modo geral, com o fim de ordenar um padrão de sociabilidade moderado – indício dessa inconstância é a posição dúbia da Coroa diante dos engenhos de aguardente durante todo o XVIII, pois, ao mesmo tempo que editava bandos e ordens régias os proibindo continuava a conceder cartas de sesmarias e licenças para a ereção dos mesmos. O que se faz para implantar certo padrão – se é que o conseguem -, as disputas para dissuadi-lo e as negociações realizadas, como dissemos, é o que nos interessa pontilhar.

A prisão do escravo que comprou aguardente nos encaminha para as medidas tomadas pelo poder lusitano instalado na colônia com vistas a dar conta do problema dos usos do álcool. É o que se verifica com a sentença de José Pereira que, preso por embriaguez, deveria se apresentar a cada três meses com “uma certidão de bem-viver”, sem o que seria enviado à prisão mineira do Cuieté (Souza, 2004: 114). Donde se denota que a embriaguez era argumento para se justificar a prisão também dos vadios. Como já se percebe, a punição por embriaguez era negociável: ora os bêbados eram reclusos, como indica a súplica, ora soltos e obrigados a prestar contas. Mas, a prisão deste branco pobre suscita questões como: quem emitia esta “certidão de bem-viver”? Veja-se que o sujeito deveria prestar contas trimestralmente: portanto, pode-se inferir que a sociedade é quem verificaria sua sobriedade, ele não poderia mais perturbar o “sossego público” com sua “bebedice” – o que denota certo consenso acerca dos prejuízos que aquele estado trazia. Logo, podemos insistir na existência de pressão social para se evitar a bebedeira – e, como indica Laura de Mello e Souza, por mais que fosse uma transgressão menos grave, acreditamos que nem por isso era mais tolerada por aquela sociedade. Como observamos, parece que neste caso o tempo imposto pelas autoridades indica que este sujeito deveria dar satisfação de sua sobriedade – além de servir para incutir gradativamente no sujeito que ele não deveria beber nunca mais, caso contrário, a repressão seria forte. Por fim, fica claro que não só os escravos, mas também os homens livres pobres se embriagavam e eram presos – inclusive, talvez possamos afirmar que durante o processo civilizador em curso na América lusitana, os vadios bem como os bêbados eram utilizados em determinadas tarefas como a construção de presídios, fortalezas, na abertura de caminhos, na povoação de territórios inóspitos, etc (Souza, 2004: 77-130). As construções, por exemplo, eram mantidas e desenvolvidas à custa do trabalho dos “desclassificados” em terras remotas e suscetíveis a ataques de índios, doenças, fome, dentre outras intempéries, com isso, purgava-se a sociedade civil dos seus perturbadores e economizava-se nos jornais dos trabalhadores das obras.

Outra variável decisiva que orientou a colonização e organizou a sociedade luso-americana foi a religião cristã, que também se responsabilizou para com os bêbados e teve papel considerável na atribuição de representações e na tomada de atitudes para a formação e conseqüente repressão desta categoria social. Quando vieram fazer as visitações requeridas pela Inquisição portuguesa, os padres jesuítas relataram algumas denúncias que dão aspectos que nos parecem reveladores acerca do que estamos investigando. Como se sabe, os religiosos insistiram na difusão e preservação do casamento como forma adequada para a vida em comum entre homens e mulheres da colônia. Todavia, no real vivido do sertão houve circunstâncias imprevistas que comprometeram a fiel consecução dos papéis sociais planejados: alguns maridos mineiros que escapavam do papel austero que lhes cabia o matrimônio foram classificados nas visitações do Santo Ofício com responsáveis pela ‘má vida’ de suas mulheres. As violências conjugais desconheciam posição social, como o caso de um juiz de Cachoeira que “muitas vezes se embebeda e por essa razão dá má vida e pancadas a sua mulher que é honrada (...)” (Figueiredo, 1997: 88). Outra referencia empírica nos é dada por Luciano Figueiredo quando noticia que um preto forro de nome Bartolomeu, casado com a preta forra Antonia Coelha, tinha “bulhas” com sua esposa por andar vadiando e “tratando” com outras mulheres. Na mesma acusação de comprometer o casamento, “cairia um pardo forro que ‘costuma-se embebedar e por razão de tal bebedeira dá má vida a sua mulher e roga pragas a si mesmo, dizendo que o diabo o leva em corpo e alma’” (Figueiredo, 1997: 89). Portanto o argumento dos visitadores não deixa dúvidas: o marido dava má vida porque se embriagava. Se é verdade que ele batia na esposa quando naquele estado, não podemos ter certeza, pois, como informa Luis Mott, em inúmeros processos, tanto de sodomia quanto de blasfêmia, solicitação ad turpia e outros crimes do conhecimento do Santo Ofício, os inquisidores habitualmente perguntavam o estado de consciência dos réus, por reconhecerem que deviam ser relevadas ou consideradas menos graves aquelas faltas cometidas sob forte efeito da bebida (Mott, 2005: 60). Seguindo os passos de Foucault, o ato e seu relato constituem dois acontecimentos diferenciados que não podem ser reduzidos um ao outro, pois a linguagem não é transparente. No nosso caso, a caracterização do embriagado como aquele que está possuído pelo diabo em corpo e alma dá pistas de como se constituiu na colônia a figura do bêbado – bem como a associação do bêbado a um sujeito violento que compromete o disciplinamento das condutas planejado pelos visitadores. Segundo Ronaldo Vainfas (Vainfas, 1989: 345), ao criminalizar sexualidades desviantes, valorizar o casamento e reprimir a feitiçaria, a Igreja pretendia controlar as populações do Novo Mundo, e, neste quadro de ações repreensíveis, podemos incluir a ebriedade na medida em que ela representava um momento de “perda do juízo”. É o que percebemos diante da carta redigida em março de 1753 no Rio de Janeiro por um minerador que envia à Inquisição lisboeta o que segue:

 

“Eu, Bernardo Gomes da Costa, me denuncio perante Vossas Mercês da culpa abaixo expressada: estando fora do juízo por demasia de vinho, chamei ao escravo mina Francisco, de Goiás, estando nas minas de Paracatu, sendo paciente do negro há três anos passados, não tendo confessado antes por estar preso’” (Mott, 2005: 68).

Trata-se de uma confissão redigida pelo próprio autor e enviada à Inquisição; isto sugere certa eficácia na conservação deste tipo de atitude talvez com vistas a estimular as pessoas a fazê-lo: é interessante conservar este tipo de registro hoje. Sugere também que havia uma pressão social que não tolerava os atos homossexuais. O fato de o sujeito nomear-se culpado pode indicar certa estratégia para escapar de penas mais severas – e como dá o nome inteiro indica que não era escravo, o que talvez possa explicar o fato de poder dirigir-se diretamente à Inquisição. A primeira informação que dá é a que estava “fora do juízo por demasia de vinho” justamente para alegar a situação excepcional em que se encontrava, situação na qual seu “juízo” estava suspenso. Se de fato o sujeito estava fora de si não podemos garantir, o que se pode inferir é que a Inquisição dava como legítimo e excepcional esse estado, mas por que? O que garante à embriaguez este argumento de autoridade que exime ou atenua a punição? A resposta talvez esteja justamente no dado “fora do juízo” – o que indica outra forma de julgar, semelhante ao que o padre alemão João Brawer reconhecera nos índios de Ibiapaba – para os ambos quem resolve é a Inquisição. Forma de julgar não aceita mas atenuada se a ponte que a acessa é a embriaguez. No entanto, os inquisidores não podiam condenar totalmente o consumo de vinho porque eles também o usava em seus ritos – se fosse aguardente a história talvez fosse outra história. O que era condenável então é o que seu consumo gerava e como não se sabia com precisão a quantidade que os indivíduos podiam bebê-lo sem alterar sua percepção, o “termômetro” eram as práticas, as condutas – e uma das condutas inaceitáveis era a sodomia. Portanto, talvez possamos afirmar que o estado de embriaguez era condenado porque nele, os agentes cometiam atos que comprometiam a imposição da moralidade cristã nos trópicos, como brigas entre cônjuges, relações homossexuais, transgressão da doutrina e, como indicaremos, com festas profanas.

Diante desse quadro não nos parece absurdo conjecturar que só era tolerável uma sociabilidade em torno do álcool que fosse regrada e disciplinada de acordo com a quantidade e ocasiões certas e local adequado, portanto, nas festas. Se tivesse a função de homenagear os santos e mortos, os excessos de bebida pareciam dignos de perdão nesses momentos. A festa seria, portanto o espaço da embriaguez civilizada em que se materializavam as investidas de conformação dos povos da colônia - a festa tornava-se o local permitido para se “perder o juízo”. Fora dela, se fosse realizada em momentos que não se tivesse como oportunos ou se a embriaguez guardasse outra função, os castigos e punições deveriam acontecer para se retificar os fiéis. Todavia, muito embora as autoridades régias se empenhassem em modificar os códigos culturais existentes na colônia, Mary Del Priore insiste que houve lutas reais e simbólicas pela dominação do espaço coletivo das festas e, poderíamos acrescentar, da função social das bebedeiras dentro delas. Teólogos e moralistas enxergavam naquelas reuniões momentos de sacrilégios e blasfêmias escarnecedoras da religião e, por isso, insistiam na separação entre sagrado e profano para alterar a sensibilidade e mentalidade da população colonial. Daí a objeção ferrenha às comemorações, “tidas como ocasião de pecados múltiplos: a embriaguez, a glutonaria, a luxúria, a vaidade, o dinheiro desperdiçado no jogo, a ‘loucura’ das danças, todos os pecados que aproximavam os homens ao Demônio” (Priore, 2000: 92). Nesse sentido, o alvo da Igreja era o conteúdo profano das festividades, que deveria ser banido das comemorações religiosas. Segundo Del Priore, a normatização das festas implicava no adestramento da experiência dos negros, muitas vezes vista como resquícios de paganismo. Tanto que

“Antonio José de Moura Abreu, bispo visitador, de passagem por São Paulo em 1758, queixou-se amargamente do “abominável som de batuques e danças desonestas que muitas vezes se juntam a umas indecentes festas de São Gonçalo de que resultam graves ofensas a Deus no excesso de comer e beber com que se demasiam na gula e depois destas mesmas danças se passa a outras indecências que a modéstia cala mais ninguém ignora” (2000: 100). Para uma Igreja preocupada em incutir nos fiéis o ideal de “temperança” nas condutas, nada poderia ser mais ofensivo do que esses momentos de expansão de comportamentos – todavia, a autora ressalta que apesar disso, os batuques eram tolerados, pois eles garantiam a “boa paz” da sociedade. E, como os padres perceberam que não poderiam suprimir as festas, decidiram integrá-las à vida social das populações mediante regras do que seria considerada uma boa atitude, para isso, a Igreja investigava tudo que envolvia as festividades religiosas, desde a procissão até sua continuidade em bailes, bebedeiras, jogos e fornicação. Desta maneira, o ambiente festivo se torno o canal por meio do qual tenta-se impor regras às comunidades.

Mesmo com esses investimentos, as festas proporcionavam espaços para pecados que escapavam das amarras normativas dos preceitos cristãos. A disputa se polariza de um lado com as instituições tentando dar uma função sagrada às festas e, de outro, com os desvalidos fazendo delas um momento de encontro e protesto contra as mesmas instituições modernas que pretendiam adestrá-los. É o que se observa no período atravessado pela abstinência alimentar na Quaresma que, no entanto, era invertida pelos excessos do Carnaval: o entrudo representava a “revanche contra a fome quase crônica da Colônia. Nele, as bebidas e comestíveis significavam a vingança contra a abstinência obrigatória da situação anterior, expressando, no limite, o caráter de enfrentamento da ordem social acachapante. Portanto, a possibilidade de “colocar a festa de ponta-cabeça” estava na maneira como as classes subalternas a encaravam: a começar pelo uso da bebida. Segundo Del Priore, “muito se bebia na Colônia graças, sobretudo, à fabricação artesanal e barata da cachaça conhecida como ‘jeribita’. Ninguém estava livre de se embebedar, mesmo quando ligado à organização da festa e mesmo quando esta se tratava de uma festa religiosa” (Priore, 2000: 98).


Conclusão

Pelo dito, os autores deixam entrever que houve um esforço para esquadrinhar a embriaguez com o fim de senão bani-la ao menos levá-la para o interior das festividades populares para que no interior delas, o álcool funcionasse para reproduzir o estado de coisas da colônia. Todavia, o álcool servia como alavanca que impulsionava atos transgressores, atos que não condiziam àquele comportamento - exigido pela Igreja - que expressasse a usurpação da representação que os donos do poder metropolitano incidiam sobre os escravos, mulatos e pobres. A festa representava para os padres e autoridades o espaço da bebedeira tolerável e civilizada, mas ainda assim, havia um comportamento recomendado quando naquele estado. Contudo, na festa, ele funcionava como catarse para as populações da colônia além de abrir espaço para transgressões, escapando, portanto do enquadramento que pretendia reprimi-la. Além do mais, não podemos afirmar que havia um padrão regular de consumo alcoólico na América Portuguesa, pois ele dependia de uma série de condicionantes que dependiam da capacidade de negociação dos bebedores, do acesso à bebida, do grau da fiscalização das autoridades régias, da subjetividade dos agentes em torno do álcool e de todo um jogo de relações que variavam conforme o espaço-tempo considerados.

De todo modo, podemos arriscar que houve um processo civilizador em torno da experiência alcoólica luso-americana que não aceitava qualquer tipo de embriaguez e que, para impor um modo de administrar as vidas da colônia, operou novos e diferentes tipos de exclusões. Talvez seja o caso de afirmar que a embriaguez levada para o interior das festas cifradas, religiosas ou não, indique uma inflexão no processo civilizador da experiência etílica da sociedade luso-americana: enquanto nas cauinagens e nas sessões de consumo alcoólico dos grupos africanos, as bebidas eram preparadas pelos próprios participantes dos rituais, a bebida era produzida pelos donos das engenhocas expressando, portanto, complexificação social expressa na separação entre produtores e bebedores. E o fato de os senhores e padres imporem uma data, local, quantidade e qualidade de bebida ingerida, representa de onde parte o movimento colonizador sobre o álcool. Fora desses momentos: repressão; dentro deles, mas em excesso: repressão!


Bibliografia

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Pour citer cet article :

Endrigo Brunozi Avelar Lucas, « Civilizar a embriaguez: notas sobre os usos do álcool na América Portuguesa ".  RITA, n° 3 : Avril 2010, (en ligne), Mise en ligne le 6 avril 2010. Disponible en ligne http://www.revue-rita.com/regards-champlibre-37/civilizar-a-embriaguez-champlibre-143.html