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As “Jornadas de Junho” em São Paulo

Neste relato, abordaremos a série de protestos que tomaram as ruas do Brasil em junho de 2013. Nossa narrativa priorizará a cidade de São Paulo, capital a partir da qual eclodiram as manifestações...

...Este trabalho encontra-se dividido em três partes. A primeira tratará da estratégia tecida pelo Movimento Passe Livre (principal movimento social a organizar os protestos) para conquistar a revogação de um aumento de tarifas no transporte público. Já a segunda parte relembrará a posição de condenação assumida pela mídia que, apesar da truculência policial, insistia em chamar manifestantes de “vândalos”. A terceira e última parte comentará a guinada que houve na cobertura da imprensa, que passou a incentivar a ida às ruas, mas que também alterou as pautas dos protestos. Assim, manifestações que nasceram focadas na questão do transporte público foram transformadas numa luta por pautas amplas e difusas. Também na parte final comentaremos a difícil conjuntura que os movimentos sociais brasileiros têm enfrentado no começo de 2014.

Palavras-chaves: Manifestações de junho de 2013 ; Movimento Passe Livre ; Movimentos Sociais ; Mídia ; Copa do mundo. 

 

Résumé 

Dans ce texte, nous évoquerons la série de protestations qui ont débuté dans les rues brésiliennes en juin 2013. Nous privilégions ici la ville de São Paulo, capitale à partir de laquelle ont écloses les manifestations. Ce travail est divisé en trois parties. La première s’intéresse à la stratégie élaborée par le Mouvement Passe Livre (principal movement social qui organise les protestations) pour obtenir la révocation de l’augmentation des tarifs dans les transports publics. Dans la deuxième partie, nous rappellerons la position de condamnation tenue par les médias, qui malgré la brutalité policière, s’entêtaient à considérer les manifestants comme des « bandits». La troisième et dernière partie s’attachera à commenter le volte-face opéré par la presse, qui se mit à inciter la population à descendre dans la rue, tout en interprétant librement les revendications des protestations. C’est ainsi que les manifestations qui se focalisaient d’abord sur la question du transport public se transformèrent en une lutte pour les revendications larges et diffuses. Dans la partie finale, nous commenterons également la difficile conjoncture que les mouvements sociaux brésiliens ont eu à affronter en début d’année 2014.

Mots clés : Manifestations de juin 2013 ; Mouvement Passe Livre ; Mouvements sociaux ; Médias ; Coupe du Monde.

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Oliver Cauã Cauê França Scarcelli

Estudante de Geografia

Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Rio Claro (SP) – Brasil

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As “Jornadas de Junho” em São Paulo

 

Introdução

          A cidade de São Paulo tem a marca da concentração. São mais de 11 milhões de habitantes espremidos entre habitações precárias nas bordas da cidade e o imponente centro financeiro das Avenidas Berrini e Paulista. O vaivém diário dessa população acontece em ônibus e metrôs superlotados, com altas tarifas e em viagens que não raro ultrapassam duas horas.

A origem da cidade remonta a uma colina localizada na beira do rio Anhangabaú, onde padres jesuítas construíram um colégio para catequisar índios. Posteriormente, a escravidão de africanos motivou a expansão das lavouras de café. Com o advento das ferroviais e a crise de 1929, que impossibilitou as importações para o Brasil, o capital acumulado pelos cafeicultores permitiu uma inédita industrialização no país. Imigrantes de todo o mundo, mas, sobretudo italianos, forneceram a mão-de-obra barata e com conhecimentos técnicos para possibilitar esse feito. A cidade de São Paulo, então, viu sua influência crescer no cenário nacional e hoje concentra 11% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional. Sua influência não se restringe apenas à economia. Importantes transformações na política nacional, como as “Diretas Já”, pelo fim da ditadura, ou o impeachment do presidente Fernando Collor tiveram o centro da cidade como palco de suas mobilizações. Em 2013, mais precisamente em junho, não foi diferente. Os protestos iniciados pelo Movimento Passe Livre, que reivindicavam a revogação do aumento das passagens do transporte público, rapidamente se alastraram pelo país.

Escrever sobre essa série de protestos que foi vitoriosa e fez com que as tarifas no transporte baixassem em 14 capitais e inúmeras outras cidades é uma tarefa muito difícil. Em primeiro lugar porque as “jornadas de junho”, como ficaram conhecidos os protestos, ainda não terminaram. Para se ter uma ideia do clima de efervescência política em que o país entrou, somente no mês de março de 2014 assistimos a uma greve dos garis do Rio de Janeiro, manifestações simultâneas contra a Copa nas principais capitais (só em São Paulo foram 200 detidos) e a central de distribuição de alimentos do estado de São Paulo foi incendiada[i]. Em segundo lugar, porque os esforços de interpretação estão longe de serem exaustivos. Não foram poucos os intelectuais que elaboraram hipóteses para a explosão dos protestos, mas que, em seguida, foram obrigados a revê-las à luz de novos dados… Essa dificuldade em escrever foi latente para mim: a cada hipótese que levantava mais e mais pesquisas se faziam necessárias. Sendo impossível ter um distanciamento dos fatos, optamos por fornecer apenas um relato. Espero que ele seja útil para estimular a pesquisa  – e o engajamento  – dos leitores. A bibliografia desse artigo cita dois livros importantíssimos sobre o momento: “Vinte Centavos”, de Pablo Ortellado [et al] e “Cidades Rebeldes”, uma coletânea de artigos que inclui contribuições de Ermínia Maricato, Lincoln Secco e até do Movimento Passe Livre (SP). Certamente eles auxiliarão nessa tarefa de compreensão.

I. Estratégia de luta

          No dia 2 de junho de 2013, o prefeito Fernando Haddad e o governador Geraldo Alckmin anunciaram o aumento das tarifas do transporte público. Desta forma as passagens dos ônibus, responsabilidade do primeiro, e as dos trens e metrôs, responsabilidade do segundo, iriam de R$ 3,00 para R$ 3,20. Cabe lembrar que o transporte público representa o terceiro maior gasto das famílias – praticamente se igualando aos valores dedicados à alimentação (G1, 2012) – e que o serviço é lotado, não é nada pontual, sem ar condicionado (estamos nos trópicos!) e que panes nos trens ocorrem todos os dias… Nesse sentido, qualquer aumento no valor das tarifas é extremamente penoso para os mais pobres. O Movimento Passe Livre (MPL) de São Paulo já havia realizado diversos atos “preparatórios” nas periferias da cidade. No dia 6 de junho, o movimento decidiu realizar um protesto no centro da cidade após o reajuste ter entrado em vigor. A estratégia deste ano foi bem diferente da estratégia de luta contra aumentos anteriores. Pablo Ortellado a resumiu da seguinte forma:

“(...) a estratégia para 2013 era a de realizar atos grandes e de maior impacto, em vias mais centrais, e com curto intervalo de tempo entre eles, de maneira a asfixiar o poder público, fazendo jus ao lema do MPL: ‘Se a tarifa não baixar, a cidade vai parar! ’. Ao invés de uma campanha longa e com atos semanais, como em 2011, a ideia agora era uma campanha de menor duração e maior intensidade.” (Ortellado, 2013: 26)

Este ato seguia pelo centro da cidade quando, numa manobra brusca, tomou uma viela e alcançou a Avenida 23 de Maio, principal ligação entre as regiões norte e sul da cidade. A manobra foi tão inesperada que a polícia tardou a se articular para liberar a via. No dia 7 de junho o coletivo Passa Palavra escreveu um relato onde afirmava que a ação policial foi “destrambelhada” e contribuiu para aumentar a capilaridade do protesto:

“Para o bem ou para mal, a ação policial na Avenida 23 de Maio, ao dispersar os manifestantes a esmo, multiplicou as frentes de ação em inúmeros focos. Uma parte dos manifestantes seguiu para o Terminal Bandeira, bem próximo ao local. Outra seguiu para a Prefeitura e para o Terminal Parque Dom Pedro e uma terceira ainda continuou pela Avenida 9 de Julho e subiu para a Avenida Paulista, que foi bloqueada pela primeira vez. Por onde se passava, pelas ruas do centro, era possível ver rastros da manifestação: pichações de protesto, panfletos e pequenas barricadas com lixos e lixeiras. Nos terminais de ônibus, eram realizados catracaços, permitindo que a população tomasse ônibus gratuitamente.” (Passa Palavra, 2013)

A imprensa procurou denegrir a imagem do Movimento tachando os manifestantes de vândalos e afirmando que existira um confronto entre os últimos e os policiais.

   

Imagem 1: A foto escolhida para a manchete foi tirada de baixo para cima e mostrava policiais marchando em meio a uma barricada de fogo. Como heróis numa guerra, são acompanhados pelas luzes de suas viaturas. Foto: Leandro Moraes/UOL. Fonte: Folha de S. Paulo (07/06/13)

Pela primeira vez na história, o ato do dia 7 de junho ocupou a Marginal Pinheiros, situada na região mais nobre da cidade. A Marginal Pinheiros e a Marginal Tietê compõem o eixo principal do transporte e  possuem o tráfego de carros mais intenso da cidade. Desta vez, a Tropa de Choque já estava de prontidão e lançou bombas e balas de borracha para agredir as pessoas e dissolver o protesto. A movimentação nas ruas cresceu paulatinamente, atingindo a marca histórica de 12 mil pessoas no dia 11 de junho. (Secco, 2013 : 73). A manifestação seguiu da Av. Paulista – cartão-postal da cidade e importante centro financeiro, congregando sedes dos principais bancos e empresas transnacionais – rumo ao maior terminal de ônibus da cidade, o Dom Pedro II. O objetivo era entrar no terminal, dialogar com a população por meio de um jogral e de panfletagens e, em seguida, encerrar o ato. No entanto, a Tropa de Choque impediu que as pessoas entrassem no terminal e iniciou a repressão do ato. De acordo com a revista Vice (2013), o grupo que estava imediatamente em frente aos policiais sentou-se no chão e apenas uma mulher grávida ficou em pé. A Tropa de Choque, então, atirou nela, o que revoltou os manifestantes. A partir daí, as pessoas seguiram em pequenos grupos por ruas estreitas até a Paulista, avenida símbolo da cidade. No caminho, destruíram lixeiras, agências bancárias e até um posto policial. Inúmeras barricadas com fogo foram montadas. Devido à repressão policial e a solidariedade popular pós-repressão – como veremos logo adiante – começou a se delinear em São Paulo uma tática de resistência às forças policiais: os black blocs. Muito presente na Europa, os black blocs são assim descritos pelo sociólogo André Takahashi :

“Paralelo a essa estratégia – e independente do MPL e congêneres – se manifestou nesse período a tática do Black Bloc, em grande parte como resposta à violência policial. O Black Bloc é composto por pequenos grupos de afinidade, muitas vezes feitos na hora, que atuam de forma independente dentro das manifestações. Mas, ao contrário do MPL, o Black Bloc não é uma organização ou coletivo e sim uma ideia, uma tática de autodefesa contra a violência policial, além de forma de protesto estética baseada na depredação dos símbolos do estado e do capitalismo.” (Takahashi, 2013)  

Conforme Douglas Anfra (2013), a esta inovadora forma de resistência popular, que escolheu vias estratégicas e montou barricadas para retardar a chegada da polícia, devemos somar a perda do medo de enfrentar a polícia. Atos de dano ao patrimônio se disseminaram, sobretudo os ataques às agências bancárias.

II. Na mídia, a reprovação aos protestos

          Nos jornais e na televisão, a postura era de condenação. A razão dos protestos, isto é a revogação do aumento das tarifas, sequer era tratada. No dia 12 de junho (2013), o comentarista Arnaldo Jabor, da TV Globo, afirmou:

“A grande maioria dos manifestantes são filhos de classe média, isso é visível! Ali não havia pobres que precisassem daqueles vinténs, não. Os mais pobres ali eram os policiais apedrejados, ameaçados com coquetéis molotovs, que ganham muito mal. (...) Realmente, esses revoltosos de classe média não valem nem vinte centavos.”

O ato do dia 13 de junho teve uma ligeira queda no número de manifestantes, 10 mil pessoas (MPL – SÃO PAULO, 2013), e foi marcado por uma repressão jamais vista desde a redemocratização do país (Ortellado, 2013: 95). Mesmo antes do início do ato, o comandante da Polícia Militar de São Paulo, Ben Hur, ordenou “prisões para averiguação” – ilegais no país – e prendeu uma centena de pessoas por portarem tinta guache, máscaras de gás ou vinagre (que alivia o efeito do gás lacrimogêneo). O ato seguiu apenas dois quilômetros, até a rua da Consolação, quando foi interrompido por uma barreira policial. O comandante da operação disse “espera aí que eu já volto” e abandonou a negociação com os militantes do Movimento Passe Livre (Estadão, 2013). Após o comandante sair do ato surgiu uma outra barreira policial atrás dos manifestantes e uma terceira na praça lateral. Estavam encurralados.

Imagem 2: A repórter Giuliana Vallone, da TV Folha, foi acertada no olho por uma bala de borracha. Segundo ela, o policial mirou em sua cabeça e atirou. Foto: Diego Zanchetta/Estadão

Ao todo, mais de 200 pessoas foram detidas. A polícia atirou bombas de gás em escolas, postos de gasolina e até mesmo dentro de um apartamento na praça Roosevelt. Cenas de agressões multiplicaram-se, mesmo a detidos já imobilizados. Mais de 20 jornalistas foram feridos. A repressão tomou grandes dimensões. Em resposta a requerimento de 4 de julho de 2013 impetrado pelo sociólogo Pablo Ortellado, a polícia respondeu que utilizou 506 balas de borracha e 938 “unidades de munição química” na manifestação do dia 13 de junho (Locatelli, 2014) . O repórter fotográfico Sérgio Silva, também atingido por bala de borracha, perdeu a visão de um olho:

“Meu caso ficou bastante conhecido por causa da brutalidade e pelo abuso da violência. Não tenho muito o que falar sobre o 13 de junho. Resumidamente: sofri agressão da Polícia Militar. Foi um tiro de bala de borracha e infelizmente fui atingido no olho esquerdo. A bala que me atingiu foi certeira. Tenho diagnosticado 100% da perda da visão do olho esquerdo. E isso está sendo muito difícil já que tenho o olho como meu instrumento de trabalho.” (Cruz, 2013)  

O dia seguinte (14/06) foi marcado por uma intensa solidariedade, com manifestações de apoio dos mais variados campos da sociedade. Um abaixo-assinado feito por professores da Universidade de São Paulo (USP) pediu a libertação dos presos, a Anistia Internacional chamou de “chocante” a atuação da polícia e mesmo a conservadora Associação Nacional de Jornais condenou a truculência policial. Pesquisas apontaram que a maioria da população estava a favor dos protestos (Folha de São Paulo, 2013). Numa enquete ao vivo, levada ao ar pela TV Record, um âncora de televisão de um programa policial perguntava quem “era a favor de manifestação com baderna”. Os telespectadores poderiam votar ligando para dois números de telefones diferentes. Mesmo com essa tendenciosa pergunta (que associava “protestos” à “baderna”) as respostas não deixavam dúvidas: 986 pessoas responderam “não [aos protestos com baderna]” e 2.321 responderam “sim [aos protestos com baderna]”. A população estava definitivamente a favor dos protestos.

A mídia que havia se posicionado contrária às manifestações, tachando os manifestantes de “vândalos” e “baderneiros”, foi obrigada a acompanhar sua audiência e noticiar a violência policial.

         

Imagem 3: Composição com as capas do jornal Folha de S. Paulo dos dias 13/06/13 (esquerda) e 14/06/13 (direita). A primeira capa mostra um policial ferido na cabeça e repercutiu a fala do governador, que cobrou mais endurecimento. A capa do dia seguinte mostra dois feridos pela polícia e salienta que os “distúrbios começaram após a ação da Tropa de Choque”. Em 24 horas, a imprensa parece ter mudado de opinião e passou a defender a ida às ruas.

III. O novo objetivo: pautar (e anular) os protestos

          Alguns dos comentaristas que se haviam apressado em chamar os manifestantes de vândalos “filhos de classe média” pediram desculpas e elogiaram um Brasil que “havia acordado”. A partir daí, todos os veículos operaram uma estratégia nova: transformar uma mobilização que nasceu focada na revogação do aumento das passagens em uma luta por pautas difusas. A partir do dia 14 de junho, reforçaram que nas ruas estavam pessoas com pautas para além dos “20 centavos”. Os jornais elegeram as “principais pautas”: “saúde e educação padrão FIFA”, “fora todos os corruptos” e “contra a PEC 37”. A referência ao “padrão FIFA” é uma crítica aos luxuosos estádios construídos, alguns deles em localidades onde não há qualquer tradição futebolística dos habitantes (como na Amazônia), e que só foram possíveis graças ao emprego de bilhões de reais do governo federal, via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Num país com graves deficiências nas áreas sociais a destinação desse vulto de recursos para estádios de futebol é vista como um escândalo. Já o projeto de emenda constitucional 37 (PEC 37) limitaria os poderes de investigação de um setor conservador do judiciário, o Ministério Público.

Em paralelo, trataram de valorizar o aspecto “pacífico” dessas manifestações e condenar a ação dos black blocs. A revista Época (Bombig; Gorczeski, 2013) elogiou o Movimento Passe Livre (MPL) e sugeriu que ele devesse ampliar sua pauta de forma a atingir a presidenta da República:

“Até a semana passada, o Palácio do Planalto pouco sabia sobre o MPL. (…) A presidente Dilma preferiu ficar distante. O MPL promete mais barulho. Se suas ações não forem motivadas apenas pelo aumento das passagens de ônibus, ela talvez tenha de rever sua decisão.”

O número de manifestantes cresceu fortemente após a onda de solidariedade contrária à violência policial e ao amplo apoio (ou interesse) da mídia aos protestos. O ato do dia 17 contou com 250 mil pessoas (Secco, 2013 : 73) e interrompeu, simultaneamente, a circulação de carros na Marginal Pinheiros, na Av. Paulista e na Av. Faria Lima, distantes entre si cerca de 10 quilômetros. O centro de comando das principais empresas atuantes no Brasil e América Latina foi paralisado. Nas ruas, não era possível vislumbrar o fim da multidão. Nesse mesmo dia, o MPL São Paulo foi convidado para ser entrevistado ao vivo no Roda Viva, o programa de entrevistas mais importante da televisão brasileira. Um dos convidados desse programa, José Vicente Filho, coronel da Polícia Militar, travou um importante debate com Nina Capello, do MPL. A relevância desse debate decorre do fato de que conseguimos entrever a disposição do governo do estado e da prefeitura na resolução do conflito. Eles sustentaram a alta das tarifas até o último momento, isto é, até centenas de milhares de pessoas manifestarem-se nas ruas.

“– Qual é o plano B de vocês se  –  e, ao que parece, é o que vai acontecer  –  o governo não concordar com a reivindicação principal que é reduzir os 20 centavos [de aumento na passagem]? –  pergunta o coronel.

– Em primeiro lugar, isto é um jogo político. O [governador Geraldo] Alckmin agora mesmo deu uma declaração dizendo que está disposto, após as manifestações, onde tivemos mais de 100 mil pessoas nas ruas, a receber o Movimento e a conversar sobre o aumento da tarifa. Talvez essa seja uma sinalização de que com a pressão popular o governador está sendo forçado a rever sua posição e aceitar a revogação do aumento. […] O próximo passo é esse: continuar pressionando até que o poder público entenda que não há outra opção que não seja revogar o aumento da tarifa –  diz Nina.

– E será que vocês tem essa força toda para atingir esse objetivo? – continua o coronel.

– Olha, não tenho dúvidas. Nós tivemos uma manifestação hoje com mais de 100 mil pessoas... – responde Nina.”

Lucas de Oliveira, militante do MPL, também presente no programa, complementa a fala de Nina:

“– A gente ainda está tendo essa manifestação… – fala Lucas.

– 100 mil pessoas no Brasil, você quis dizer? – pergunta o coronel.

– Mais de 100 mil pessoas só em São Paulo! A manifestação se dividiu pela Marginal, tomou a ponte Estaiada…

– Não chegou a 100 mil, né, Nina…

– Passou de 100 mil!

– Não é possível… 100 mil você travaria completamente a cidade…

– Travou completamente a cidade! – diz Nina, sorrindo.”

Dito e feito. A cidade se mobilizou para paralisá-la. Ao governador e ao prefeito restou ceder e revogar o aumento das tarifas. Em seguida os protestos se espalharam pelo Brasil. No dia 20 de junho, atingimos a marca de três milhões de pessoas nas ruas (Secco, 2013 : p. 75). Houve redução de tarifas em mais de 100 cidades pelo Brasil. Em Paulínia (SP), a tarifa do transporte foi zerada.

No entanto, mesmo com essa vitória histórica, nem tudo são flores. O protesto do dia 20 foi transformado em uma data de comemoração da revogação do aumento. No dia anterior, partidos de esquerda e movimentos sociais de São Paulo se reuniram para discutir a segurança da manifestação. A hostilidade às bandeiras vermelhas dos partidos já havia sido notada nos atos anteriores e pequenos casos de agressão foram relatados. Nessa reunião acertou-se que mesmo os grupos anarquistas e o Movimento Passe Livre (de tradição autonomista) defenderiam os militantes partidários, afinal todos estariam no mesmo lado da batalha, ainda que com táticas diferentes. Foi um momento raro de união da esquerda. Apesar dessa organização, no ato do dia seguinte membros de partidos políticos foram gravemente agredidos por grupos fascistas, sob o aplauso da população. Além das agressões, assistimos a uma espécie de carnaval de rua, com as pessoas cantando o hino nacional e carregando a bandeira verde e amarela. Um manifestante anônimo disse à revista Vice (2013):

“Sem foco e sem objetivo, não vamos conquistar nada. Só vai ter um monte de gente na rua protestando por nada. Parece que a TV Globo veio aqui e conseguiu acabar com o movimento. Ninguém tem uma pauta séria, ninguém tem porra nenhuma. Virou uma festa, ninguém tá mais indignado aqui.”

 

Conclusão

          Esse é o clima atual do país: uma disputa polarizada. A direita está melhor organizada e sem medo de ir às ruas. No começo de 2014, no dia 22 de março, assistimos a uma reedição da Marcha da Família, principal apoiadora do golpe militar de 1964, e que atualmente defende o fim da democracia e a volta dos militares ao poder. Em contraponto, uma marcha antifascista foi organizada no mesmo dia e horário em uma localidade próxima. Manifestantes das duas marchas se encontraram e houve pelo menos uma agressão de fascistas a um militante de um partido de esquerda. Relatos apontaram que a polícia deteve o militante de esquerda que estava sendo agredido. O crescimento de agremiações fascistas (e a decorrente violência às minorias) foi notado, mas a influência desses grupos ainda é restrita.

No mês de fevereiro houve uma intensa repressão aos movimentos de esquerda. Houve uma campanha articulada pela imprensa e polícia para reduzir a influência dos movimentos e partidos de esquerda na sociedade e destruir o legado das lutas de junho. O caso do Rio de Janeiro é emblemático. Em 2014, as passagens aumentaram em algumas cidades. No Rio, o MPL iniciou uma série de protestos. Tragicamente, um cinegrafista de televisão foi morto atingido por um rojão. Poucos dias após o ocorrido, a polícia anunciou a prisão de dois jovens supostamente envolvidos no caso. No entanto, as dúvidas sobre essa investigação policial são abundantes: as cenas que mostram o momento da agressão revelam alguém de um porte físico substancialmente maior ao acusado preso. Além disso, o advogado que defende os rapazes já havia defendido policiais envolvidos em corrupção em uma favela carioca. Este advogado também já havia se manifestado na televisão e acusado o deputado Marcelo Freixo, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), um partido de esquerda no país, de estar envolvido com os black blocs. Como as provas, evidentemente, não se sustentaram, ele foi obrigado a pedir desculpas ao vivo em uma entrevista ao rádio. Na mesma semana, um articulista de uma revista conservadora acusou o professor da Universidade de São Paulo Pablo Ortellado de ser o mentor intelectual dos black blocs e que, portanto, ele seria coautor do assassinato do cinegrafista.

Ao mesmo tempo, a polícia endureceu nas ruas. No dia 22 de fevereiro, policiais impediram que a segunda manifestação contra a Copa ocorresse, o que fere o princípio constitucional de liberdade de manifestação. Por meio de uma tática policial conhecida pelo nome de Caldeira de Hamburgo (proibida em vários países da Europa), um contingente imenso de policiais cercou completamente os manifestantes logo após o início da passeata e, num ato de humilhação, determinar que todos sentassem num espaço diminuto, por entre berros, cacetadas e ofensas. Daí seguiu-se a detenção de centenas de pessoas, ainda que elas não tenham infringido nenhuma lei do país. Após esse ato, advogados foram impedidos pelo órgão regulador de sua profissão (a Ordem dos Advogados do Brasil) de defender os manifestantes. Uma dezena de relatos também apontou que os sinais das principais operadoras de celular foram cortados nas imediações do ato. Dias após, o Poder Judiciário anunciou a criação de um serviço de plantão de juízes, voltado exclusivamente para manifestantes, a fim de julgar e punir em poucas horas aqueles envolvidos na “quebra da ordem”.

Apesar da repressão, organizaram-se manifestações espontaneamente nos trilhos do metrô e black blocs foram às ruas pedir a queda do governador. O trabalho de base do MPL também continua sendo feito. Dentre as mobilizações recentes, um caso é notório: a greve dos garis no Rio de Janeiro. Os trabalhadores da limpeza se organizaram de maneira independente ao sindicato e iniciaram uma greve no primeiro dia do carnaval, justamente quando são mais solicitados os seus serviços de varrição de ruas. Essa greve surpreendeu o prefeito que declarou haver um “motim” na cidade. A imprensa destacou as imensas montanhas de lixo que se avolumavam na cidade e a “irresponsabilidade” dos garis. Um batalhão de policiais foi designado para obrigar os garis a trabalharem. O sindicato – à revelia da categoria – assinou um acordo com um pífio aumento salarial e a Justiça determinou a ilegalidade da greve e a imediata volta ao trabalho. Enfrentando todas essas adversidades, os garis permaneceram mais três dias em greve, o suficiente para conquistar um aumento salarial de quase 40%. Uma vitória inesquecível.

Os grandes movimentos sociais do país prometem continuar suas mobilizações em maio e junho deste ano durante a preparação e realização da Copa do Mundo, com vistas a obter mais ganhos concretos para as classes populares. É uma luta difícil, árdua, perigosa em todos os sentidos. Como afirmou Ruy Braga, ela buscará reeditar a “maior revolta popular da história brasileira” (Braga, 2013 : 81).

Notas

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[1] Desde junho de 2013, as manifestações sociais reúnem diversos segmentos. As causas e as formas de protesto também são variadas: desde a invasão de uma indústria farmacêutica para o resgate de cachorrinhos beagle que serviam de cobaias até uma manifestação subterrânea pela cidade após uma pane em duas composições do metrô, quando uma centena de pessoas gritaram com ironia “é este o país da Copa!”. Cabe mencionar também o número recorde de ônibus depredados nas periferias (118 na Grande São Paulo no ano de 2014, por exemplo), os inúmeros bloqueios das vias realizados pelos sem-teto e em uma paralisação de trabalhadores de uma grande rede de fast-food.

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Pour citer cet article

Oliver Cauã Cauê França Scarcelli,  « As “Jornadas de Junho” em São Paulo », RITA [en ligne], N°7 : juin 2014, mis en ligne le 26 juin 2014. Disponible en ligne : http://www.revue-rita.com/regards7/as-jornadas-de-junho-em-sao-paulo.html