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Mudanças no campo da comunicação alternativa e nos processos culturais nas últimas décadas: o caso do vídeo popular

Changement dans le domaine de la communication alternative et dans les processus culturels durant les dernières années : le cas de la vidéo populaire

Resumo

Nos últimos anos constatamos uma crescente popularização da prática do vídeo no Brasil, com variações e disputas no campo da representatividade. Essas novas ações surgem sobretudo nas periferias dos grandes centros urbanos. Quais os contornos desta produção e de seus modos organizativos? À luz da bibliografia brasileira sobre a comunicação alternativa e políticas da representação, o artigo aborda as experiências da Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP) nas décadas de 1980 e 1990 e do Coletivo de Vídeo Popular de São Paulo (CVP), já nos anos 2000. A análise se debruça sobre a articulação entre práticas de comunicação alternativa e os movimentos sociais no contexto de redemocratização brasileira, que culmina nos anos 2000 em um novo cenário, onde o vídeo surge como um instrumento para ações sociais e culturais que reivindicam o direito à expressão artística como necessário ao exercício pleno de cidadania. Desta forma, aponta para formas distintas de apropriação dos mecanismos de produção da representação pelos sujeitos populares, descortinando tensões entre produtores de vídeo e o "povo", movimentos sociais, ONGs, Estado e arte, com nuances próprias de cada período político.

Palavras-chave : Associação Brasileira de Vídeo Popular; Coletivo de Vídeo Popular de São Paulo; Comunicação; Comunicação Alternativa; Vídeo Popular.

Résumé

Au cours des dernières années, nous avons assisté à une popularisation croissante de la pratique de la vidéo au Brésil, avec des variations et des conflits en termes de représentativité. Ces nouvelles actions apparaissent principalement dans les périphéries des grands centres urbains. Quels sont les contours de cette production et ses modes d'organisation? À la lumière de la bibliographie brésilienne sur les politiques alternatives de communication et de représentation, l'article analyse les expériences de l'Association Brésilienne de Vidéo Populaire (ABVP) dans les années 1980 et 1990 et du Collectif de Vidéo Populaire de São Paulo (CVP), dans les années 2000. L'étude se concentre sur l'articulation entre les pratiques de communication alternatives et les mouvements sociaux au moment de la démocratisation brésilienne, qui aboutit dans les années 2000 à un nouveau contexte où la vidéo apparaît comme un instrument d'actions sociales et culturelles revendiquant le droit à l'expression artistique nécessaire au plein exercice de la citoyenneté. De cette manière, elle pointe vers des formes distinctes d'appropriation des mécanismes de production de la représentation par les sujets populaires, révélant des tensions entre les producteurs de vidéos et le "peuple", les mouvements sociaux, les ONG, l'Etat et le monde artistique, avec des nuances typiques de chaque période politique.

Mots clés : Association Brésilienne de Vidéo Populaire; Collectif Vidéo Populaire de São Paulo; Communication; Communication Alternative; Vidéo populaire.

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Wilq Vicente

Mestre em Estudos Culturais
Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo - Brasil

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Mudanças no campo da comunicação alternativa e nos processos culturais nas últimas décadas: o caso do vídeo popular

Introdução

          O florescimento do documentário no Brasil de hoje coincide com o rompimento da invisibilidade na grande mídia, que, com raras exceções, nos últimos quarenta anos marcou, em larga medida, os segmentos populares deste país, como habitantes de favelas e de bairros periféricos das grandes cidades. A invisibilidade era, e é, expressão de discriminação (Hamburger, 2005: 198).

O chamado vídeo popular, vertente da produção de vídeo herdeira de debates próprios do cinema novo em toda a região da América Latina, constituiu-se a partir da utilização do vídeo enquanto uma ferramenta de apoio às lutas e das mobilizações sociais. O debate gerado por esses processos, no entanto, se referenciava mais na discussão interna das estratégias dos movimentos aos quais estavam vinculados, no âmbito da comunicação alternativa e popular, do que no debate com a cinematografia latino-americana, ainda que seja considerado um desdobramento natural deste segmento. O pesquisador e professor Luiz Fernando Santoro, em seu livro "A imagem nas mãos", de 1989, que revê sua participação nas atividades que envolveram o vídeo popular do período, destaca que:

O ponto central [...] não é o fim do cinema e sua substituição pelo vídeo, mas, inicialmente, o reconhecimento de que o Novo Cinema Latino-Americano necessita redirecionar-se; não deve ser, assim, a etiqueta de tudo o que foi recentemente produzido, mas a expressão de um cinema inovador no político e no estético, novo no sentido de progresso, de desenvolvimento contínuo, de ruptura e de valor, de tudo aquilo que pode chamar-se busca (Santoro, 1989: 85).

A apropriação do meio vídeo, direta ou indiretamente, se deu necessariamente em um cenário de grave crise econômica, social e cultural a partir da década de 1980. Uma “década perdida” segundo alguns estudiosos em relação ao desenvolvimento dos países do bloco e à sua inserção na nova ordem internacional. Soma-se a isso a excessiva concentração no campo da comunicação, o que atravancou profundamente o processo de democratização na região. A concentração econômica e do controle político da representação e dos veículos de comunicação no continente impossibilitaram que esses meios servissem como canais de expressão e de participação popular, o que é considerado por Regina Festa (1986: 11), "o pior entrave ideológico que a comunicação impõe à sociedade, definindo e estabelecendo a temática e as áreas do discurso social".

É a partir do processo de abertura democrática e de grande pressão social por mudanças que surge a produção do que se convencionou chamar de vídeo popular, expressão que passou a identificar o conjunto das produções e dos modos de atuação de grupos de vídeo, especialmente no Brasil, Argentina, México e Venezuela durante as décadas passadas.

Para compreender o sentido desse processo, bem como para destacar semelhanças e diferenças entre as experiências hoje, o texto se debruça sobre as ações e realizações da Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP)[1] entre 1984 e 1995 e do Coletivo de Vídeo Popular de São Paulo (CVP) entre 2005-2012[2]. Ao avaliar as experiências, se considera relevante a similaridade, as rupturas e continuidades nas formas organizativas dos dois projetos.

No Brasil, tem-se o conhecimento de uma dezena de experiências relevantes entre 1980 e 1990, tais como: TV VIVA (em Olinda, no estado de Pernambuco), TV Maxabomba (na cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro), TV Memória Popular (Natal, Rio Grande do Norte) e a TV Mocoronga (Santarém, Pará) que encamparam a construção da ABVP, entre inúmeras outras. Além do Vídeo nas Aldeias, projeto fundado em 1986 e que se mantém ativo até hoje. A partir do final da década de 1990 alguns projetos deixaram de existir e, nas últimas duas décadas, outros surgiram, com transformações no campo da comunicação, como é o caso do Movimento do Vídeo Popular - MVP (em Goiânia, Goiás) e o Mídia Ninja (Rio de Janeiro), este último, sobretudo com foco na internet e nas redes sociais.

Convém entender em que medida tais experiências superam os interesses imediatos de determinado grupo social e em que medida interage com discursos hegemônicos ou colabora na construção de perspectivas da comunicação alternativa. Existe uma ausência de estudos neste campo na região, apesar de ser um setor com potencial estratégico na dinâmica sociocultural. Este artigo se debruça, assim, sobre a articulação entre práticas de comunicação alternativa e os movimentos sociais no contexto de redemocratização brasileira, que culmina nos anos 2000 em um novo cenário, onde o vídeo surge como um instrumento para ações sociais e culturais que reivindicam o direito à expressão artística como necessário ao exercício pleno de cidadania. 

Resultado de pesquisa desenvolvida na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (Vicente, 2015), este artigo tem como objetivo iluminar, à luz da bibliografia brasileira sobre a comunicação alternativa e políticas da representação, as transformações na produção de vídeo ligada às classes populares da década de 1980 a 2010, tendo em vista mudanças nas formas organizativas, nas narrativas presentes nessa produção e sua relação com o contexto histórico. A pesquisa buscou verificar se a construção que tais produções audiovisuais elaboram a respeito de categorias como “povo” e “popular" se faz em diálogo com concepções oriundas de outras estruturas sociais, institucionais e suas categorias discursivas utilizadas para abordar a desigualdade.

Além da revisão bibliográfica a pesquisa contou com entrevistas e levantamento de informações em revistas e documentos produzidos pelos grupos, além de análise de vídeos representativos, visando compreender os mecanismos de produção, formas organizativas, histórico de formação, bem como identificar a forma como dão significação à sua atuação e seus produtos. Os resultados são apresentados brevemente neste artigo, que enfoca sobretudo o histórico dos grupos em relação a transformações políticas e culturais no período, a forma de participação popular e sua relação com a classe média e com o sistema de comunicação hegemônico e mesmo o diálogo com as perspectivas do cinema latino americano no período. 

I. A experiência da Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP)

          Em um cenário de florescimento de movimentos populares diversos e de utilização do vídeo como instrumento de contrainformação surge no Brasil a Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP). Fundada em 1984, a ABVP tinha o objetivo de fortalecer o movimento, a organização e proporcionar o intercâmbio daqueles que trabalhavam com o vídeo independente, atuando com distribuição, capacitação e informação. A entidade reunia grupos produtores diversos espalhados no país e ainda estabelecia interlocução com a produção internacional, sobretudo latino-americana, como com o Festival del Nuevo Cine Latinoamericano, em Cuba, e encontros de vídeo no Chile, Uruguai, Peru e Bolívia, que experimentavam um movimento semelhante.

A ABVP foi criada com o objetivo de incentivar a realização de vídeos de interesse dos movimentos sociais, além da produção, exibição, distribuição, formação e debate, gerando uma integração conjunta. Com o passar do tempo, a entidade se articulou como uma grande rede de produtoras de vídeo, Organizações Não Governamentais (ONGs) diversas, canais comunitários de TV, sindicatos, institutos de pesquisa e assessoria. Os realizadores de vídeo popular de então aspiravam, como plano político mais amplo, uma ideia de “dar voz” ao povo, como vemos na perspectiva de Santoro (1989: 113), fundador e um dos presidentes da ABVP:

O vídeo apresenta uma perspectiva bastante rica, que reforça o compromisso daqueles que se preocupam com a realidade social latino-americana e brasileira. E isso fazendo uso de um meio de comunicação que não é revolucionário, como muitos acreditam, mas que pode ser um componente privilegiado das lutas populares em todo o continente, colaborando para que as classes populares possam expressar a sua própria visão de mundo, informar-se, registrar a sua história.

A produção de vídeo estava então ligada aos anseios de participação e, portanto, de voz da população, que passou a ver nela um canal de mensagens para ecoar suas demandas e reivindicações, entre as quais estavam aquelas de ordem política, econômica, social, e logo, também por mudanças do sistema de comunicação. Impulsionada pelas novas tecnologias de comunicação da época, relativamente "mais acessíveis" à população em geral, a produção de vídeo cresceu e desenvolveu-se, nesse momento, no âmbito da chamada comunicação alternativa. Para Cicilia Peruzzo (2006: 06),

Ela não se caracteriza como um tipo qualquer de mídia, mas como um processo de comunicação que emerge da ação dos grupos populares. Essa ação tem caráter mobilizador coletivo na figura dos movimentos e organizações populares, que perpassa e é perpassada por canais próprios de comunicação.

Peruzzo (2003: 09) ainda ressalta que:

É importante que se entenda que a mídia [alternativa] se refere a um tipo particular de comunicação na América Latina. É aquela gerada no contexto de um processo de mobilização e organização social dos segmentos excluídos (e seus aliados) da população com a finalidade de contribuir para a conscientização e organização de segmentos subalternos da população, visando superar as desigualdades e instaurar mais justiça social.

A difusão desta produção ocorria em circuitos não-tradicionais, em instituições e espaços ligados às lutas populares, como associações de bairro, sindicatos e igrejas, entre outros. Como apontado por Festa e Santoro (1991: 190-191):

Os trabalhadores também organizaram seus esquemas de produção para documentação e para a formação em sindicatos, nas escolas sindicais, na cidade e no campo. Com tudo isso, apropriaram-se do vídeo os mais diferentes setores da sociedade: trabalhadores, sindicatos, comunidades de base, mulheres, ecologistas, negros, indígenas, associações de bairro, estudantes, escolas, universidades e outros.

Os segmentos subalternos organizados utilizaram o vídeo com um objetivo claro – a busca por uma cultura contra-hegemônica, opondo-se ao que era apresentado pelos meios tradicionais de comunicação e buscando novas vozes e olhares, como uma alternativa para a produção usual da época. Tinha-se em vista que, para que uma parcela da sociedade pudesse estar presente nesse novo espaço audiovisual, ela precisava ter o direito de controlar parte desse espaço, estabelecendo prioridades que atendessem a suas necessidades informativas, escolhendo o que se vê e produzindo o que não estava disponível. Para Henrique Luiz Pereira Oliveira (2001: 46),

Os produtores de vídeo popular […] justificavam sua opção pelo vídeo em função de sua aplicabilidade à ação política: (1) o baixo custo, que favorecia a democratização do acesso aos meios de produção; (2) a facilidade de circulação dos vídeos, que necessitava apenas de aparelhos de videocassete e poderia usufruir de uma rede de exibição junto aos movimentos sociais; (3) a agilidade na produção, que ao contrário do cinema não necessita esperar revelação do material gravado, possibilitando que o registro de uma greve ou repressão policial fosse exibido logo após o acontecimento; (4) a facilidade na operação dos equipamentos, que favorecia a democratização, pois permite processos menos hierarquizados que no cinema, podendo inclusive assumir uma certa precariedade; (5) a possibilidade de fomentar uma efetiva participação popular, na medida em que os vídeos abordassem os movimentos populares […] e envolvessem a sua participação nas etapas de realização. Devido a esses fatores, o vídeo seria um instrumento estratégico para a reversão do processo unidirecional e monopolista dos meios de comunicação de massa, conferindo voz ativa àqueles que antes seriam receptores passivos.

O vídeo popular realizado em boa parte do Brasil pretendeu se diferenciar do entretenimento diário das grandes mídias. "A câmera [era] utilizada para expor a realidade na sua crueza, de modo a produzir evidências 'realistas' aptas a captar o interesse e a mobilizar vontade de agir dos espectadores" (Oliveira, 2001: 09). O vídeo passou a problematizar, por meio da imagem videográfica, temas, questões, cenários, imaginários e personagens ausentes nos veículos tradicionais da indústria cultural. Os vídeos sustentavam seu apelo na densidade da situação enfocada – miséria, fome, desemprego, precariedade na saúde e educação, insegurança no trabalho, organização popular, lutas e mobilizações etc. Desta forma, segundo Arlindo Machado (1993: 10), "o vídeo passou a ser entendido como um novo meio de comunicação, capaz de permitir a confecção de programas para os movimentos, não considerando mais o público como uma massa indiferenciada, mas como uma soma de grupos de interesse". Para Machado (1993: 11), "o vídeo tende a se disseminar de uma forma processual e não-hierárquica no tecido social e isso acaba por confundir os papéis de produtores e consumidores, donde resulta, pelo menos nas experiências mais bem-sucedidas, um processo de troca e de diálogo pouco comum em outros meios".

Buscando uma ruptura com as narrativas tradicionais, seja televisiva ou cinematográfica, o vídeo popular introduziu o "olho amador". Este olhar, fora do campo artístico, proporcionou um maior "acesso" popular também ao olho da câmera, ainda que de forma geral, as classes médias progressistas fossem agentes centrais no processo, havendo uma integração na concepção e na realização dos vídeos. Segundo Julio Wainer[3], produtor na época da ABVP, o vídeo ainda era um equipamento para poucos. Os que vinham da base social e tinham algum acesso, não tinham repertório nem procedimento para uma mensagem mais elaborada. No máximo, filmavam uma palestra que julgavam importante, de forma que continuava a ser de classe o controle e a elaboração da linguagem, ainda que houvesse uma participação popular inédita no processo.

Do ponto de vista histórico, o vídeo tornou-se acessível, ao menos no discurso de representação simbólica da realidade. Machado (2001: 266-267) aborda de forma enfática a mudança que o vídeo trazia: "jamais passaria pela cabeça dos cineastas dos tempos utópicos do cinema novo [e latino-americano] que as pessoas simples e humilhadas pudessem ser dotadas de riqueza interior e capazes de colocar questões que muitas vezes nos deixam emudecidos". Por outro lado, o vídeo popular não herdou, em grande medida, a problematização estética do Nuevo Cine Latinoamericano, colocando-se como um "meio menor", sem explorar todas as potencialidades artísticas do aparato. Por esta razão, para Machado (1993: 10), "a questão da linguagem 'natural' ou 'específica' para o vídeo nunca encontrou um terreno muito fértil para germinar, e se alguém tentasse enfrentá-la com seriedade muito breve se desencorajaria diante da descomunal diversidade das experiências".

Mas, de modo geral, é possível dizer que os realizadores de vídeo popular buscavam uma "linguagem" mais apropriada às condições de produção e que fosse ao encontro do cotidiano do homem comum, do povo, ainda que implicasse em pouco espaço para a exploração de uma linguagem própria. A mensagem social, construída ao lado da classe trabalhadora, era mais importante e tinha contundência imediata, a comunicação direta era necessária. Como aponta Santoro em depoimento a Newton Cannito (2001: 3):

Não é possível analisar o vídeo popular apenas do ponto de vista da produção. É por isso que o início foi muito mal-entendido. Para algumas pessoas ele era apenas um registro de má qualidade técnica. Ao se referir aos vídeos elas falavam: 'esteticamente isso não é nada!'. E era verdade! Nós colocávamos uma câmera na mão de trabalhadores, por exemplo, e gravávamos uma determinada situação. Os realizadores não tinham formação estética e isso se refletia na baixa qualidade dos vídeos. Nós tínhamos consciência dessas limitações, mas, naquele momento, optamos por deixar a discussão puramente estética de lado. A discussão política era mais importante.  

O chamado vídeo popular surge antes como uma prática social do que como arte e exercício de linguagem. Assim, diferentes formas de produção, até vídeos realizados a partir de um olhar externo sobre as ações e manifestações, concebidos por realizadores independentes, eram bem aceitos. Esse diferencial não decorria apenas do seu conteúdo, mas dependia de vínculos que eram estabelecidos com os movimentos enfocados nas produções e o público que os assistia. "Tratava-se de contribuir para a percepção de alguma coisa que deveria ser transformada. Mais ainda: trata-se de engajar a vontade de indivíduos e grupos em uma ação, o que implicava em torná-los agentes de uma ação transformadora" (Oliveira, 2001: 382)[4].

Nota-se que o vídeo popular realizado no Brasil, de maneira geral, desempenhou um importante papel de registro das lutas sociais, da memória e do imaginário popular ausentes dos meios de comunicação hegemônicos. O acervo constituído e distribuído pela ABVP girava em torno de 500 títulos. Nos vídeos, as histórias de vida, experiências e o conhecimento dos entrevistados são alvo das produções. “O vídeo [chegou] aos grupos e movimentos populares como mais um componente de luta e, por suas características técnicas, [adaptou-se] bem a projetos de comunicação popular [alternativo] que têm os diferentes grupos sociais como público-alvo, prestando-se desde a simples exibição de programas pré-gravados até a mensagens originais” (Santoro, 1989: 60).

Com a implantação do Plano Real no Brasil e a dolarização da economia, os recursos de organismos internacionais que sustentavam a atuação da ABVP deixaram de ser significativos. Ameaçou um projeto que àquela altura já era bastante amplo e ambicioso de capacitação, distribuição de boletins informativos[5] e regionalização das atividades. A distância entre as bases e os dirigentes da instituição, envolvidos pragmaticamente em projetos, também se aprofundou. O que seria um espaço para a discussão sobre o uso do vídeo no movimento social passa a ser uma associação de realizadores sob a égide do popular, uma grande ONG articuladora e capacitadora. Ao mesmo tempo, consolidava-se o cenário institucional das oportunidades audiovisuais para os principais produtores ligados à entidade, particularmente com a expansão das TVs universitárias e educativas. Sendo assim, a ABVP encerrou as atividades em meados de 1995.

O fim da entidade, não dissolve o papel precursor que teve na organização e participação popular na criação, produção e difusão de vídeos. A ABVP apontou importantes caminhos no campo da comunicação alternativa, na luta pela democracia e na representação simbólica do discurso social. É possível afirmar que o arcabouço deixado pela entidade ainda oriente projetos, grupos e coletivos de comunicação alternativa no país, ultrapassando o âmbito da geração.

Outras experiências organizativas viriam surgir. É possível notar que, a partir dos anos 2000, "houve crescimento de investimentos, aumento do número de organizações e projetos, novas formas de atuação e articulação pautadas pelo direito à comunicação” (Carelli; Rocha, 2014: 198). A análise da experiência do Coletivo de Vídeo Popular de São Paulo, no próximo tópico do texto, aponta nesse caminho e busca identificar elementos que possa contribuir para essa discussão.

II. A experiência do Coletivo de Vídeo Popular de São Paulo (CVP) e as disputas simbólicas no campo da representatividade

          Após o enfraquecimento do projeto da ABVP, a partir dos anos 2000, constatamos uma nova popularização da prática do vídeo, certamente sobre outros pilares. Protagonizado por uma outra geração e impulsionado por distintas condições de acesso aos instrumentos de produção, bem como por um conjunto disperso de iniciativas públicas e privadas pontuais, esse novo crescimento do uso do vídeo, agora digital, trouxe consigo demandas diversas no sentido de criar canais e ações de iniciativas de comunicação popular por todo o Brasil.

Essas novas manifestações podem ser identificadas, em especial, por meio do surgimento de novos atores sociais, movimentos culturais que partem da periferia dos grandes centros urbanos, em pequenas comunidades populares, e que lutam pela ampliação de sua representatividade. De modo geral, os realizadores assumem uma trajetória comum: emitem a condição crítica da experiência cotidiana nas produções[6].

Após a proliferação de movimentos sociais na década de 1980 e um contexto de enxugamento do Estado na década de 1990, as ONGs foram fortalecidas como forma importante de organização da sociedade civil. Temas como inclusão social, educação, diversidade cultural, infância e adolescência, grupos étnicos e de gênero não hegemônicos, ecologia, entre outros, passaram a figurar entre os principais campos de atuação de instituições sem fins lucrativos.

Diferente dos movimentos sociais, em vez de organizar para reivindicar do Estado políticas e direitos, parte significativa das ONGs passaram a ocupar elas próprias o papel do Estado, atendendo pontualmente a algumas demandas em campos que estão fora do interesse do mercado e nos quais o Estado era ineficiente para atuar – ainda assim sem o acesso universal que é característico do Estado de direito. Inicialmente apoiadas por recursos de organismos internacionais e empresas privadas, a partir dos anos 2000 intensificou-se a utilização de recursos estatais e o vídeo ganhou visibilidade neste guarda-chuva. Ações culturais e educacionais de algumas ONGs se fortaleceram e passaram a realizar oficinas de cinema, vídeo e novas mídias, principalmente com jovens de baixa-renda da periferia, com o apelo do "desenvolvimento cidadão", passando a relacionar o direito à cultura e à comunicação entre os direitos humanos.

Neste contexto, o dispositivo das oficinas de vídeo com jovens, principalmente oriundos das periferias, "parece ter se mostrado necessário para resolver o grande nó que se tornara a cisão entre o discurso da participação e a prática dos realizadores de vídeo popular", da década de 1980 em torno da ABVP. Segundo Clarisse Alvarenga (2004: 64),

É sabido que, com a globalização, as relações de trabalho se modificaram, gerando um encurtamento do tempo livre dos trabalhadores. É escassa a disposição de tempo para atividades paralelas. Talvez por isso, grande parte dos projetos de vídeo [...] envolva jovens. Portanto, não se trata mais de uma atuação empreendida pelos setores vinculados a sindicatos e partidos políticos, mas de jovens que dispõem do tempo necessário para investir em um projeto videográfico.

Em São Paulo, em 2005, no contexto de implantação da recém-criada Coordenadoria da Juventude da Secretaria de Participação e Parceria da Prefeitura Municipal, foram articulados alguns fóruns voltados para o diálogo do poder público com diferentes setores culturais da juventude, dentre eles o de Hip Hop, de Artes na Rua e de Cinema Comunitário. O Fórum de Cinema Comunitário inicialmente reuniu algumas das ONGs que ofertavam oficinas de audiovisual na cidade de São Paulo, além de participantes destas oficinas e membros de outras instituições públicas.

Dentre os jovens participantes do Fórum de Cinema Comunitário, alguns deles representavam seus grupos ou coletivos audiovisuais criados posteriormente às oficinas. A maior parte desses jovens já tinha concluído os cursos e desejava produzir filmes, mas não via estruturados caminhos institucionais de apoio para a continuidade dos trabalhos. Seguiam, de forma militante, com a realização de vídeo, atividades de exibição e replicavam a formação recebida em suas comunidades.

As ONGs logo demonstraram a limitação de seu campo de atuação, não tendo como atender à demanda criada no ambiente de suas oficinas. Os realizadores passaram a buscar maior autonomia das ONGs e o fortalecimento político do Fórum. Como aponta Santoro (2014: 53-54), essa nova articulação contou, sobretudo, “com a possibilidade concreta de dialogar com estruturas de governo democráticas e de participar da discussão e do estabelecimento de políticas públicas para as áreas ligadas à comunicação”. Para Peruzzo (1998: 51),

Se nos anos 70, 80 e parte dos anos 90 a contra-comunicação aparecia preponderantemente no âmbito dos movimentos populares, das organizações de base, da imprensa alternativa, da oposição sindical metalúrgica, [….] de setores progressistas da igreja católica, ou realizada por militantes articulados em núcleos de produção audiovisual, a partir dos últimos anos pipocam experiências comunicacionais as mais diversas, incluindo as do tipo popular tradicional (hoje mais conhecidas como comunitárias, baseadas em premissas de cunho coletivo).

O Fórum de Cinema Comunitário se constituiu então como um conjunto de reuniões permanentes que visava multiplicar, ampliar, dar visibilidade e acesso aos meios de produção por realizadores oriundos majoritariamente da periferia, grande parte deles aglutinados em grupos com vínculos locais nos bairros. O Fórum teve como resultado imediato a organização da "I Mostra Cinema de Quebrada", em 2005, em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo (SMC), com o propósito de divulgar os vídeos, aprofundar e ampliar o público do debate que vinha ocorrendo em reuniões do Fórum. Entre as atividades programadas, foram realizadas conversas entre representantes da esfera pública, educadores do audiovisual, realizadores, universidades e demais interessados e parceiros. A iniciativa pretendeu discutir demandas e soluções de continuidade para a recém-estruturada rede de agentes comunicadores.

Foi a partir dessa mostra que o então Fórum de Cinema Comunitário passou a ser conhecido como Fórum Cinema de Quebrada[7], termo que acabou permanecendo entre alguns participantes do Fórum daquela fase e no meio acadêmico. Logo, porém, o Fórum deixou de se encontrar com frequência. Entre os fatores, divergências de perspectiva, reminiscências da tutoria das ONGs, a inexistência de soluções imediatas para as demandas no âmbito daquele espaço de discussão e a ausência de um projeto político claro do grupo.

É também nesse período que alguns coletivos que integravam o Fórum aprovaram seus projetos no Programa VAI da SMC[8], política pública recém-implantada de pequenos apoios financeiros a projetos culturais de jovens de baixa-renda. Sancionado como lei municipal em 2003, teve seus primeiros projetos aprovados em 2004, contemplando neste e nos anos subsequentes diversos projetos de grupos e coletivos participantes do Fórum, entre outros ligados ao audiovisual e a diversos campos de expressão artística, dando novo fôlego a essa produção e revelando a contundência das iniciativas naquele contexto da produção cultural popular. Para se ter uma ideia, em 2008, foi realizado um levantamento que identificou 38 núcleos jovens de audiovisual popular apenas na cidade de São Paulo. Dos núcleos/coletivos, 53,33% estavam localizados na região Sul; 20% na região Leste e Norte; 5,66% no Centro e 1% na região Oeste (Vicente, 2008), revelando uma distribuição territorial marcadamente periférica.

Cada coletivo atuava segundo uma dinâmica própria, variando as formas de atuação, dentre elas produção, formação e exibição, sendo que alguns grupos trabalhavam nas três frentes. Em meados de 2007 houve uma tentativa de rearticulação entre alguns grupos, já fora do ambiente da Coordenadoria de Juventude e das ONGs. Nesse momento houve uma busca pelo avanço em relação às nomenclaturas de “cinema comunitário” e “cinema de quebrada”, visando rever o projeto político do Fórum. Questionava-se o naquelas nomenclaturas o seu caráter de efeito local e a perspectiva de estrita de auto-representação, ao mesmo tempo em que buscava-se romper com a origem institucional do grupo, defendendo a necessidade de abarcar, no nome, a perspectiva de colocar-se ao lado das classes populares e dos movimentos sociais. Não se conseguiu chegar a um conceito mais apropriado, mas foi estabelecida uma nova articulação dos agentes, agora em outros termos. Na discussão implementada, foi então possível sair da discussão das oficinas pontuais e implementar uma discussão acerca de políticas públicas culturais para o universo da comunicação popular e para expressões artísticas da periferia em vídeo.

O Coletivo de Vídeo Popular de São Paulo (CVP) surgiu então a partir de um resgate feito por esse grupo, que tinha suas origens no Fórum de 2005, do histórico da Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP), da década de 1980, aglutinando diversos grupos e experiências de caráter local. Evocava-se assim principalmente as atividades de formação e distribuição de vídeos da ABVP, rememorando a organização como uma das mais expressivas experiências de comunicação alternativa-popular na época, situando-se “no universo dos movimentos sociais populares, no processo de lutas por direitos de cidadania” (Peruzzo, 1998: 53-54).

Em 2008 o CVP e suas ações de formação, exibição e distribuição apresentou a "I Semana do Vídeo Popular", nova mostra com debates. Com o pequeno apoio do Programa VAI, desenvolveu nos anos subsequentes um projeto que contemplava a Revista do Vídeo Popular (com 6 edições, foi um espaço de reflexão sobre a linguagem do vídeo, o contexto de produção e as possibilidades futuras do vídeo popular no Brasil) e a distribuição de pacotes de filmes dos grupos que integravam o CVP e outros parceiros, em formato de DVDs. Os DVDs eram distribuídos gratuitamente para possíveis exibidores, como cineclubes, universidades, bibliotecas públicas, associações de bairro e espaços culturais, contemplando cerca de 80 títulos de diferentes estados, com predomínio da produção da cidade de São Paulo. As ações de distribuição de vídeo, edição de revista e organização de mostra e debates, paralelas às ações específicas de cada grupo, em geral de expressão mais local, seguiram sendo realizadas ao menos até o início de 2012.

O CVP visava um processo colaborativo-construtivo de fortalecimento e ampliação da rede de produtores e comunicadores para fomentar, aprofundar e multiplicar novas parcerias, discutir soluções comuns para a sustentabilidade desse setor específico da produção cultural, bem como promover a aproximação do vídeo a processos políticos dos movimentos sociais e de cultura da periferia. O CVP chegou a participar de outras esferas de interlocução em outros Estados, como o FEPA - Fórum de Experiências Populares em Audiovisual, organizado por uma ONG do Rio de Janeiro, e chegou a conquistar uma cadeira no Conselho Consultivo da SAV - Secretaria do Audiovisual, órgão do Governo Federal brasileiro.

Ao observarmos essas iniciativas, podemos identificar que estamos tratando de uma forma peculiar de organização, galgada na criação coletiva e no compromisso com o discurso social. Analisando a experiência de vídeos produzidos no âmbito de oficinas ministradas por ONGs, utilizando a noção de “vídeo comunitário” e propondo que esse tipo de experiência ao longo da história “substituiu” o legado do “vídeo popular”, Alvarenga (2004: 64-65) aponta que,

o aspecto que acaba por favorecer a independência dos trabalhos de vídeo comunitário é, certamente, o enfraquecimento do vínculo desses projetos com os movimentos sociais, que estiveram na base do conceito de vídeo popular e de alguma forma serviram como elemento unificador das propostas. A atuação dos vídeos comunitários segue ao largo das relações político-partidárias de qualquer natureza.

Peruzzo (1998: 47) argumenta no mesmo sentido: “desde o final do século passado passou-se a empregar mais sistematicamente, no Brasil, a expressão comunicação comunitária para designar este mesmo tipo de comunicação, ou seja, seu sentido menos politizado”. Atualmente talvez seja possível usar os dois termos para denominar distintas vertentes, desenvolvidas dentro de diferentes contextos organizativos, institucionais e com outras perspectivas políticas. Pois se parte dos grupos de produção audiovisual oriundos de oficinas tinha como cerne a expressão cultural voltada para as suas comunidades, o CVP buscou sim uma articulação política de outra ordem[9], abrigando inclusive produções mais diretamente ligadas a movimentos sociais tradicionais como o MTST - Movimento dos Trabalhadores Sem Teto[10]. Peruzzo destaca que (1998: 52):

Com o passar do tempo, o caráter mais combativo das comunicações populares – no sentido político-ideológico, de contestação e projeto de sociedade – foi cedendo espaço a discursos e experiências mais realistas e plurais (no nível do tratamento da informação, abertura à negociação) e incorporando o lúdico, a cultura e o divertimento com mais desenvoltura, o que não significa dizer que a combatividade tenha desaparecido. Houve também a apropriação de novas tecnologias da comunicação e incorporação com mais clareza da noção do acesso à comunicação como direito humano.

Desde o Fórum de Cinema Comunitário e o Cinema de Quebrada, era premente nas discussões do grupo a necessidade de se avançar na conceituação que o nome e a estrutura organizativa expressavam. Era necessário avançar para que a prática e a fundamentação do grupo não se limitassem a uma política de autorrepresentação, na qual a legitimidade do discurso se coloca em uma relação de pertencimento ao universo retratado. De toda forma, a ideia de "nossa realidade representada por nós mesmos" se colocou o tempo todo como pauta da ação, apontando sobretudo para uma disputa cultural por representatividade. Inclusive, diferentemente da produção da década de 1980, os produtores de vídeo deste novo período almejavam sobretudo vocalizar suas visões de mundo e experiências de vida através de um meio de expressão interpretado como fundamentalmente artístico e não somente no campo da comunicação.

A produção e difusão de vídeos dos anos 1980 desenvolveu-se em um momento de elaboração do discurso da redemocratização e do direito à comunicação que, sem ter ganhado espaço para além dos circuitos militantes e sem ter implicado em mudanças estruturais nos anos posteriores, apesar de ter resultado em uma série de iniciativas práticas em todo o Brasil, recrudesceu e perdeu espaço para novas práticas e ideias. Após um refluxo nos anos 1990, desde os anos 2000, assistimos uma nova geração de agentes populares acessando, ainda que de forma incipiente, parte dos mecanismos de produção - verbas e equipamentos para a realização de vídeo, agora digital.

No caso do Coletivo de Vídeo Popular de São Paulo, a estruturação de uma rede de agentes locais (voltado para ações, além da estrutura de diálogo institucional com o poder público) e a tentativa de marcar o compromisso com uma classe (para além da identidade de origem) são alguns dos elementos que revelam alguns conflitos no campo cultural a partir dos anos 2000, bem como apontam para a permanência da tensão entre o campo "comunitário" e o "popular". Como característica comum dessas duas fases (1980 e, mais recente, a partir dos anos 2000), a apropriação do meio vídeo enquanto um processo social e sua busca pelo “povo”.

Considerações finais 

          De uma maneira geral, o que se convencionou chamar de vídeo popular, aqui analisado, orbitou em duas dimensões principais, não excludentes entre si. A primeira remete a articulação entre práticas de comunicação e os movimentos sociais que girou em torno da experiência da ABVP nas décadas de 1980 e 1990. O seu uso esteve vinculado a uma estratégia de visibilidade e vocalização, enfrentando adversidades contra as quais se organizaram, em áreas como moradia, saneamento básico, saúde, direito à comunicação etc. Essa produção era feita majoritariamente por realizadores independentes de classe média junto ao povo pobre das bases dos movimentos, deixando transparecer, nos vídeos, um projeto de organização discursiva intelectual da prática do povo e em certa medida uma perspectiva de conscientização e mobilização[11].

Essa dinâmica entre “realizadores" e "povo" surge então como uma questão central. Para Peruzzo (1998: 297),

Quando falamos de envolvimento popular na comunicação, é necessário precisarmos de que participação estamos tratando, pois essa expressão, usada indiscriminadamente, já se desgastou. Na realidade, cada experiência desenvolve um tipo de participação: uns desenvolvem sua prática nas instâncias mais elementares, enquanto outras promovem a intervenção das bases em processos mais avançados […] a participação da comunidade é mais ampla apenas no nível das mensagens, por meios de entrevistas, depoimentos.

Outro sentido, cada vez mais presente a partir dos anos 2000, é a multiplicação de práticas que fazem do vídeo um instrumento no interior de ações sociais e culturais, tendo em vista o acesso à comunicação, à cultura e à expressão artística como necessário ao exercício pleno de cidadania, implicando diretamente nas tensões das "políticas da representação"[12], identitárias ou da diversidade. Houve ao longo dos últimos anos uma mudança nas configurações das relações de classes, uma mudança na natureza dos movimentos sociais, na relação entre o povo e produção cultural, bem como na dinâmica dos meios de comunicação.

É possível dizer que essa nova produção e organização desenvolveu-se, portanto com novas características, já que os vídeos são majoritariamente produzidos por sujeitos oriundos das camadas populares. Resultado de um novo contexto cultural, social, político e tecnológico, que favorece uma maior descentralização dos processos de produção e difusão. Do cinema para o VHS, do VHS para a câmera digital e, hoje, a multiplicação dos dispositivos de vídeo em aparelhos móveis e nas redes sociais. Segundo Laurent Roth (2005: 28), "a mutação técnica do vídeo implica também uma mutação da representação do homem e de sua relação com o mundo e com os outros". Nota-se nessa segunda "fase", já nos anos 2000, uma etapa prolífera em agitação de ideias e propostas, momento importante em que se desenvolve uma relação particular entre Estado, ONGs, os produtores de vídeo popular, os movimentos sociais e de cultura das periferias.

Se por um lado é possível ver um recrudescimento recente das atividades dos grupos que fizeram parte do CVP, por outro lado é possível notar, por parte do poder público, certa preocupação com esse setor cultural. E nesse sentido, apesar da fragilidade desse coletivo especificamente, é possível pensar que novos cenários de produção e articulação estejam sendo gestados com espírito semelhante na cidade de São Paulo e em outros cantos do Brasil.

Portanto, trata-se certamente da emergência de uma produção com bases bastantes diferentes, com produtores oriundos de uma posição social e econômica distintos daqueles do vídeo popular da década de 1980. Os realizadores de vídeo a partir dos anos 2000 e atualmente são em geral jovens de baixa renda, comumente em ascensão por conta dos anos de estudo a mais que seus pais, passaram por cursos de ONGs complementares à educação formal, passaram por universidades, cuja expansão no Brasil ocorreu de forma exponencial justamente nos anos 2000.

Havia na década de 1980 uma estruturação social clara em torno dos operários, dos trabalhadores, que, porém, não tinham acesso aos mecanismos de produção da representação, no caso, o vídeo. A partir dos anos 2000 falamos da produção realizada pelo próprio sujeito popular, que mais tarde, já nos anos 2010, passa a ter mais acesso à internet e às redes sociais, garantindo assim um cenário também diverso da produção, difusão e sentido das ações. Neste cenário ainda mais recente, as grandes manifestações de 2013 que ocorreram em todo o país evocaram novamente o sentido de urgência, e revigoraram coletivos e grupos de comunicação alternativos, principalmente fazendo uso de dispositivos móveis, da internet e redes sociais.

O caso mais emblemático é o Mídia Ninja, grupo que se notabilizou pela cobertura in loco dos protestos, frente a uma cobertura parcial, tendenciosa ou mesmo ausente por parte da mídia tradicional, sendo alvo ela mesma de protestos. O grupo realizou sobretudo a transmissão direta de imagens, não havendo uma elaboração de conteúdo original na época. Atualmente buscam viabilizar a produção de conteúdos, textos de colunistas parceiros, como o ex-Ministro da Cultura Juca Ferreira e o Deputado Federal pelo Rio de Janeiro Jean Wyllys, vídeos com conteúdos diversos, como vlogs de personalidades políticas e militantes, entre outros.  

O fato do vídeo popular da década de 1980 não ter como fim a constituição de um "produto artístico" e a restrição do conceito de produção cultural ao produto artístico de mercado torna a produção daquela época e a produção recente de vídeo completamente distintas. A produção da década de 1980 acabou se consolidando como parte do mecanismo democrático do discurso em torno da representação, de "dar voz" ao povo e aos movimentos sociais, o que acabou por aproximar esta produção mais da discussão acerca da democratização dos meios de comunicação do que da democratização dos mecanismos de produção cultural, este último conceito ainda sem apelo na época. Esse apelo fica mais evidente a partir da década de 2000 e recentemente.

Neste novo período, a identidade do grupo se forma a partir da "comunidade", da "quebrada", da "periferia", focado na exclusão territorial ou simplesmente na "cultura" como agente de mudança social, como sugere a aposta na prática da intervenção cultural do Coletivo de Vídeo Popular de São Paulo e de outros. Entre as principais propostas defendidas pelos próprios realizadores em torno da experiência do CVP estava a de tornar visível o que sempre foi relegado à invisibilidade, falar de algo que não é falado: a "cultura", o "modo de vida" na periferia, a situação precária de vida de parte da população. Trata-se, portanto, de "incluir" no campo de visibilidade social algo antes excluído desde campo.

Nota-se que tal discurso abre espaço para uma nova ambiguidade, permitindo que distintas perspectivas muitas vezes apareçam aglutinadas dentro das mesmas denominações, ainda que estejam dentro de um campo de grande tensão. A produção de vídeo popular recente pode, desta forma, dialogar por um lado com o discurso oficial do Estado[13], por outro com a sociedade civil na figura dos movimentos sociais e de cultura de hoje, mas também com as ONGs e com o mercado.

O que sugere a possibilidade de acomodação da perspectiva da “cultura da periferia” e sua vertente "vídeo popular" no status quo. Todas estas perspectivas podem incorrer no mesmo erro de fazer o multiculturalismo “se transformar em um shopping center de culturas do mundo” (Shohat; Stam, 2006: 474), sem repensar os pilares estruturantes em torno da comunicação, do poder e da cidadania na sociedade capitalista de modo profundo. Para Santoro (2014: 46):

As lutas da comunicação devem estar combinadas com bandeiras como reformas políticas, direitos dos trabalhadores, direitos civis, proteção ambiental, saúde para todos, reforma tributária, educação, entre outras. O importante é não entender comunicação como uma área de atuação e conhecimento desvinculada de todos esses aspectos, mas como algo que pode ajudar a todas essas lutas.

Para não se tornar um paradoxo, "tudo isso nos exige continuar o esforço por desentranhar a cada dia mais complexa trama de mediações que a relação comunicação/cultura/política articula" (Martín-Barbero, 2013: 12).

Notas de fim

[1] Para saber mais: http://www.pucsp.br/cedic/fundos/associacao_video.html

[2] Para saber mais: https://videopopular.wordpress.com/

[3] Diretor da TV PUC-SP e professor de jornalismo na mesma instituição. Foi membro e coordenador do Conselho Editorial do boletim da ABVP. Entrevista concedida por e-mail em 16 de novembro de 2015.

[4] Em 2006 o acervo da ABVP, com as fitas VHS com algumas matizes S-VHS e U-Matic, foram entregues à Videoteca da PUC-SP. Dessa forma, a Universidade realizou a digitalização e a catalogação passando a ser depositária do conjunto. Para saber mais: http://www.pucsp.br/videoteca/

[5] Boletim n°5 da ABVP: http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PVIPOSP051986005.pdf

[6] Festival Visões Periféricas com produções recentes: http://imaginariodigital.org.br/visoes-perifericas/2017

[7] O termo é popularmente usado por habitantes das periferias pobres das cidades para se referir aos seus bairros e locais de moradia.

[8] Sobre o Programa VAI da SMC: http://programavai.blogspot.com.br/p/sobre-o-vai.html

[9] Carta manifesto n. 1 do Coletivo de Vídeo Popular de São Paulo - https://videopopular.wordpress.com/carta-manifesto-no-01-2/

[10] Para saber mais: http://www.mtst.org/

[11] Referência de vídeo em torno da ABVP - Há lugar (1987), de Julio Wainer e Juraci de Souza. Ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=2wM5yIgJgE0

[12] Para uma conceituação do termo ver Esther Hamburger (2005).

[13] Referência de vídeo em torno do CVP - Qual Centro? (2010), do Coletivo Nossa Tela. Ver aqui: https://vimeo.com/29499649

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