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O Domínio Ocidental e a Formação de Conceitos para uma Escola Brasileira de Relações Internacionais
La domination occidentale et la formation de concepts pour une Ecole brésilienne de Relations internationales

 

Resumo
Este artigo parte de uma proposta de resenha do livro Western Dominance in International Relations? The Internationalization of IR in Brazil and India, escrito por Audrey Alejandro. Nosso objetivo é discutir suas ideias sobre a possibilidade da internacionalização da produção do conhecimento das ciências sociais do Sul Global, particularmente da teoria de Relações Internacionais (RI), não ser condicionada pelo domínio Ocidental. Paradoxalmente, para ela, a reprodução dos discursos críticos e anti-eurocêntricos reforçam a própria teorização eurocêntrica que vem sendo criticada. Nesse sentido, a contribuição intelectual de Amado Cervo sobre a relação entre conceitos e teorias no ensino das relações internacionais no Brasil colabora para dialogar com o paradoxo levantado por Alejandro. Neste artigo, colocamos o debate de ambos os autores em perspectiva analítica e comparativa. Se para Alejandro, a ideia de uma teoria brasileira (e indiana) não é explícita, ao mesmo tempo sugere existirem elementos importantes para sua existência. De acordo com a interpretação de Amado Cervo, concluímos que teoria tem uso instrumental, mas isso não elimina a necessidade de fundar teorias explicativas, diferentemente do que ele sugere. Ao mesmo tempo, reconhecemos a importância dos conceitos formados a partir da história cognitiva. No que se refere a uma teoria brasileira de RI, afirmamos que a resposta de Alejandro seria intermediária, não há um corpo teórico pleno, mas há bons fundamentos para avançar.

Palavras-chave: Relações Internacionais; Teoria Crítica; Conceitos; Eurocentrismo; Brasil; Produção Científica; Internacionalização.

Résumé
Cet article résulte de la proposition de réaliser la recension du livre Western Dominance in International Relations? The internationalization of IR in Brazil and India, écrit par Audrey Alejandro. Notre objectif est de discuter ses idées relatives à la possible internationalisation de la production des connaissances en sciences sociales du Sud global, et tout particulièrement d’une théorie des relations internationales qui ne serait pas sous la domination occidentale. Paradoxalement, selon elle, la reproduction de discours critiques et anti-eurocentristes renforcent la propre théorisation eurocentriste qui est critiquée. En ce sens, la contribution intellectuelle d’Amado Cervo sur la relation entre concepts et théories dans l’enseignement de relations internationales au Brésil permet de repenser le paradoxe soulevé par Alejandro. Dans cet article, nous observons les pensées de deux auteurs dans une perspective analytique et comparative. Si pour Alejandro l’idée d’une théorie brésilienne (et indienne) n’est pas explicite, elle suggère qu’il existe des éléments importants contribuant à son existence. En accord avec les interprétations d’Amado Cervo, nous concluons que la théorie a un usage instrumental, mais nous considérons que cela ne remet pas en cause la nécessité de fonder des théories explicatives, contrairement à ce que suggère Amado Cervo. Par ailleurs, nous reconnaissons l’importance des concepts formés à partir de l'histoire cognitive. En ce qui concerne une théorie brésilienne de RI, nous affirmons que la réponse donnée par Alejandro serait intermédiaire: il n’y a pas de corps théorique complet, mais de bonnes bases pour progresser.

Mots clés: Relations Internationales ; Théorie critique ; Concepts ; Eurocentrisme ; Sud Global ; Production scientifique ; Internationalisation.

Abstract
This article starts from a review proposal of the book “Western Dominance in International Relations? The Internationalization of IR in Brazil and India”, written by Audrey Alejandro. The aim of this article is to discuss some ideas related to the possibility of the internationalisation of the Social Sciences of the Global South knowledge. We focus on IR theory and the fact that it would not be conditioned by Western dominance. Paradoxically, for her, the reproduction of critical and anti-Eurocentric discourses reinforces the very Eurocentric theorization that has been criticized. In this sense, Amado Cervo's intellectual contribution on the relations between concepts and theories in the teaching of IR in Brazil can help to reflect on   the paradox raised by Alejandro. In this article, we put the debate of both authors in an analytical and comparative perspective. According to Alejandro, the idea of a Brazilian (and Indian) theory is not explicit, but she also suggests that there are important basis for its developments. According to Amado Cervo's interpretation, we conclude that theory has instrumental use, but this does not eliminate the need to develop explanatory theories, differently from what he suggests. At the same time, we recognize the importance of concepts originating from cognitive history. Regarding a Brazilian theory of IR, we consider that Alejandro's answer is a middle way. There is not a full theoretical design, but there are good backgrounds to progress.

Keywords: International Relations; Critical Theory; Concepts; Eurocentrism; Global South; Scientific Research; Internationalisation.

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Andre Sanches Siqueira Campos

Doutorando em Relações Internacionais
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas UNESP, UNICAMP, PUC-SP

andresanches41[at]gmail.com

Tullo Vigevani

Professor Emérito de Ciência Política e Relações Internacionais
Universidade Estadual Paulista (UNESP)

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Reçu : 20 octobre 2019 / Accepté : 28 juillet 2020

 

 

O Domínio Ocidental e a Formação de Conceitos para uma Escola Brasileira de Relações Internacionais

 

Introdução

          O livro Western Dominance in International Relations? The Internationalisation of IR in Brazil and India escrito por Audrey Alejandro (2019) aborda a ascensão de um movimento crítico ao domínio ocidental à respeito da produção e publicação acadêmica em relações internacionais (RI) no Brasil e na Índia. Seu livro reanima o debate desta agenda crítica e reconstrói  o conhecimento nas Ciências Sociais, baseando-se em resultados empíricos. Com isso, analisa o papel da crítica não Ocidental às formas de produção da ordem social e política. A autora discute a possibilidade da internacionalização da produção do conhecimento das Ciências Sociais do Sul Global, particularmente da teoria de RI, não ser condicionada pelo domínio ocidental. Para Alejandro, o argumento da estruturação unipolar das teorias de RI está condicionado por uma visão de mundo em que a formação acadêmica brasileira e indiana foi socializada.

Paradoxalmente, para ela, a reprodução dos discursos críticos e anti-eurocêntricos reforça a própria teorização eurocêntrica que vem sendo criticada. Nesse sentido, a contribuição intelectual de Amado Cervo sobre a relação entre conceitos e teorias no ensino das relações internacionais no Brasil contribui para dialogar com o paradoxo levantado por Alejandro. Neste ensaio, colocamos o debate de ambos os autores em perspectiva analítica. Dessa forma, discutem-se as formulações de Amado Cervo à luz da análise sociológica formulada por Alejandro. Esse artigo demonstra que as interpretações de ambos buscam alternativas, mostrando como a emancipação da produção científica brasileira (e indiana) em RI possui fundamentos sólidos e autônomos suficientes para o estabelecimento de uma teoria própria, fundada na história, experiências, diplomacia e outros campos de conhecimento, ainda que exigindo maior refinamento para ultrapassar a fase de uma teoria não explícita.

A sugestão de escrever este texto tem duas origens. Uma é o pedido para resenhar o livro Western Dominance in International Relations? The internationalization of IR in Brazil and India. A outra é o convite de Estevão de Rezende Martins para contribuir à homenagem a Amado Luiz Cervo em ocasião de seus 80 anos. Professores de história das RI da Universidade de Brasília (UnB) e outros reconhecem em Amado Cervo um dos fundadores de sua área e do campo de RI, junto com José Carlos Brandi Aleixo, filosofia, e Antônio Augusto Cançado Trindade, direito.

Nosso objetivo aqui é  mais restrito, não será o de avaliar o conjunto da obra de Amado Cervo nem a totalidade do livro de Alejandro, até por nossa incapacidade para isso. O objetivo é discutir como a relação entre conceito e teoria estabelecida por Amado Cervo para o estudo das RI no Brasil e na América Latina se relaciona com as interpretações da narrativa sobre a dominância ocidental, interpretadas no livro de Alejandro.

Para isso, além da leitura feita por Alejandro (2019) a este respeito, consideramos em particular, como citados em sua entrevista de 2012, (a) o artigo publicado na Revista Brasileira de Relações Internacionais (RBPI) em 2008, “Conceitos em Relações Internacionais”, e (b) o livro “Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros” de 2008. E também, (c) a entrevista concedida a Alejandro em 2012 e a (d) a entrevista por ele concedida a Celso Castro do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2017.

Para o melhor entendimento da interpretação de Alejandro (2019) e do pensamento de Amado Cervo quanto ao potencial teórico brasileiro em RI, optou-se pela divisão da análise em dois subtítulos. O primeiro, Alejandro e as formulações de Amado Cervo: Dois olhares sobre o Illusio Acadêmico e o Domínio Ocidental. O segundo, O Desenvolvimento Teórico Brasileiro em Relações Internacionais: Um debate sobre as potencialidades conceituais e as limitações para a sua internacionalização. Este subtítulo apresenta três pontos de análise: II.A: As Diversidades Teóricas e Potenciais; II.B: As Contribuições Intelectuais Nacionais; e II.C: As Limitações do Processo de Internacionalização. Finalmente, as nossas conclusões buscam responder a alguns dos questionamentos e críticas levantados por Amado Cervo e Alejandro.

No decorrer desta discussão de ideias, referentes à potencial formação de um corpo teórico brasileiro de RI autônomo, explícito e reconhecido há uma pergunta: pode haver teoria se não é explícita?, tentando compreender as colocações de Alejandro (2019) no capítulo Diversity. Adiantamos que nas conclusões a primeira resposta que sugerimos é que no seu livro a questão tratada refere-se à proto-teoria. Isto é, ela sugere que a ciência, os conhecimentos, a própria forma de pensar o mundo e a política externa constituem elementos suficientes para formular uma teoria explícita de RI brasileira, generalizante, mas que ainda não existe.

I. Alejandro e as formulações de Amado Cervo: Dois olhares sobre o Illusio Acadêmico e o Domínio Ocidental

         Amado Cervo é tipicamente um autor de história das RI, foi um dos importantes construtores do campo acadêmico desta área na UnB com spill over nacional e latino-americano. Tanto na UnB quanto nas demais instituições, houve intenso debate sobre a relação entre história e ciência política. Os cursos de graduação e de pós-graduação de RI originaram-se de diferentes campos do conhecimento. No caso do Brasil, história e ciência política têm papel relevante, mas também economia, direito e sociologia. Como discutimos em outra ocasião (Vigevani, Thomaz, Leite, 2016), a expansão da área de RI no Brasil, tema discutido no livro de Alejandro (2019: 62), ainda que com origens remotas, amplia-se no período da ditadura, mas ganha efetiva relevância com a redemocratização, sobretudo a partir dos anos 1985.

Alejandro (2019: 37) lembra que a diversidade da produção acadêmica em RI costuma resultar de dinâmicas geográficas e culturais específicas de um país ou região, reforçando o caráter da existência de uma pluralidade de visões (Puchala, 2002) e heranças nacionais de RI, como é aceito por diferentes escolas de pensamento. Segundo ela (Alejandro, 2019: 25), utilizando Tickner e Blaney (2013), a pluralidade de visões existentes não se traduziu em RI mais plurais. A autora também lembra que essa prática é denominada por Tickner e Ole Wæver (2009) como “epistemologias geoculturais”, ao apontar que a especialização de domínios de pesquisa está relacionada aos interesses nacionais dos acadêmicos.

Esse interesse para Alejandro (2019: 51), é acompanhado pela percepção do “illusio acadêmico”, ideia desenvolvida por Pierre Bourdieu. O illusio refere-se a como o tipo de produção acadêmica está relacionada aos seus objetivos de publicação e relevância prática. É, portanto, a escolha do meio pela qual o pesquisador apresenta o resultado de sua análise à comunidade epistêmica e à sociedade. Segundo Desch (2019), a profissionalização científica assumiu a forma de uma busca por um status científico ilusório, tornando-se, muitas vezes, inacessível e pouco prática. Entendemos que Alejandro (2019), conforme apontado no capítulo Regarding Internationalization, utiliza o objetivo de publicação como um dos elementos que contribui para a identificação dos caminhos da emancipação intelectual teórica na área das RI, tal como diferenciada por ela, em relação ao Brasil e à Índia. Também mencionada por Amado Cervo (2012: 1’07”), em relação à China.

Wang e Buzan (2014) ao compararem a Escola Chinesa e a Inglesa de RI, explicitam estas ideias relativas às “epistemologias geoculturais”, mostrando que o surgimento da primeira é determinado pela capacidade de estabelecer generalizações a partir da própria experiência e de seus valores:

Podemos concluir que a Escola Inglesa não faz referência a uma teoria nacional de RI. Porém, uma boa parte da explicação de seu sucesso é precisamente que evitou preocupações paroquiais e teve como objetivo construir uma teoria em nível global. Com o tempo gerou uma taxonomia característica e um conjunto de conceitos. Vinculada ao seu reconhecimento em termos de história está o seu reconhecimento explícito como teoria de a teoria política clássica é fonte normativa da teoria de RI... Torna-se evidente que cada vez mais e mais pesquisadores estrangeiros estão se somando aos debates de história e teoria política chinesa (Wang e Buzan, 2014:44-45)[1]

Entre as conclusões da comparação desenvolvida por Wang e Buzan (2014) está expressa a ideia de que o crescimento da importância da China no sistema internacional aumenta o interesse pela sua filosofia do conhecimento, portanto pelos fundamentos de seus conceitos e teoria de RI. Acharya e Buzan (2017) reforçam essa visão ao apontar para a relação entre o poder do Estado e o papel global no pensamento em relações internacionais:

Nós concluímos olhando mais de perto um exemplo específico do tipo de teorização asiática que pode ter aplicação mais extensa: as tradições hierárquicas e o modelo confucionista do Nordeste da Ásia. Pode haver outras tradições hierárquicas asiáticas que possam ser usadas dessa maneira. [...] A China passou os últimos poucos anos aumentando sua força militar, sendo cada mais assertiva em relação a seus vizinhos, e jogando  com seu peso recém adquirido. O Japão voltou a adquirir características de um estado ‘normal’. [...]. De certa forma isto é importante para o que dissemos acima sobre as escolas nacionais de RI e o papel da Ásia na formulação Global de RI (Acharya e Buzan, 2017 : 361-362)[2].

De acordo com Alejandro (2019: 25), o grau de diversidade teórica, temática e demográfica atua como um marcador do domínio Ocidental exercido por mecanismos de Gate-Keeping (teoria das ciências sociais aplicada à comunicação, esta prática refere-se à forma como os fluxos de informações são controlados, filtrados e reproduzidos no sistema social). Segundo ela, não há preocupação sistemática em países não-Ocidentais para adensar conceitos ou teoria em RI. Ou melhor, há pressupostos para a teorização, mas não um esforço integrado, nem um diálogo rigoroso entre scholars que consiga agrupar o conjunto dos conhecimentos. Para Lima (2020: 5’50”), no Brasil não havia experiência de “imersão total”, ainda que houvesse estudos básicos sofisticados. Alejandro mostra interesse em compreender as razões desta situação. Por isso, ao fazermos a resenha de seu livro, surge natural destacar e procurar entender, como ela o faz, o reiterado argumento de Amado Cervo de que a preocupação pela teoria no estudo das RI no Brasil seria uma preocupação desnecessária. Segundo Alejandro (2019):

O livro Inserção internacional: Formação dos conceitos brasileiros escrito por Amado Cervo permite uma visão dos conceitos de RI usados no Brasil (2008a). Tem como objetivo mostrar a contribuição de pesquisadores acadêmicos e não-acadêmicos no contexto da história do país (Alejandro, 2019: 25)[3].

Destacamos, porém, que no campo dos scholars brasileiros, há outros e importantes, apenas parcialmente, considerados pela autora. Em seu livro, o foco são os pesquisadores ligados à história das RI. Ao comparar Amado Cervo com o indiano Sarkar (1919), ela mostra que também na Índia não haveria uma teoria de RI, ainda que o tema não deixasse de preocupar alguns intelectuais desde o início século XX. Em outras palavras, o que procuramos fazer é ver como a análise da obra de Amado Cervo contribui para entender suas razões. A partir do destaque que dá ao argumento de que o debate, a pesquisa e o ensino sobre Teoria de RI no Brasil não são centrais.  Amado Cervo interroga-se a respeito de quais seriam as diferenças entre a escola brasileira de RI e a francesa, italiana, alemã ou americana, utilizando argumento semelhante ao desenvolvido por Bernal-Meza (2005).

Em sua entrevista ao CPDOC, Amado Cervo (2018) afirma:

O confronto epistemológico acadêmico (é) entre teoria das relações internacionais e conceitos aplicados às relações internacionais. Essa foi a grande contribuição de Brasília, justamente. É o que eu fiz muito na minha obra acadêmica. Fulminar as teorias de relações internacionais. Eu não sei por que, até hoje, essas teorias têm tanta importância nos currículos de graduação. Graduação tem duas ou três disciplinas de teorias... As teorias de relações internacionais são uma formulação epistemológica do mundo anglo-saxônico, Estados Unidos e Inglaterra. Essas teorias embutem, imbricam interesses, valores e padrões de conduta daquelas sociedades, como se fossem universais. Como se o interesse americano, inglês, fosse igual ao argentino, ao chinês, ao paquistanês, ao brasileiro, ao chileno. Está errado. Quer dizer, é uma deturpação mental, que as teorias impõem. Por isso que, até hoje, eu brigo sempre, sou muito conflitivo nesse aspecto. As teorias são nocivas e nefastas (Amado Cervo, 2018:22).

Na sua perspectiva, os pesquisadores são integrados às agendas de pesquisa impostas pelo Ocidente, diminuindo a sua representatividade acadêmica. Em alguma medida, isso reforça a ideia de que a elaboração de conceitos teóricos exige conhecimentos que sejam corretamente temperados pela captação da experiência. Nesse sentido, Amado Cervo, coincide com algumas das ideias apontadas por Wang e Buzan (2014). Para o autor, a própria teoria não está afastada do processamento da história, muitas vezes, para ele, a teoria é construída de acordo com os interesses dos Estados nacionais ou dos grupos sociais de pertencimento.

II. O Desenvolvimento Teórico Brasileiro em Relações Internacionais: Um debate sobre as potencialidades conceituais e as limitações para sua internacionalização

          A. As diversidades teóricas e potenciais

       A autora parece absorver a ambiguidade de alguns intelectuais brasileiros sobre os estudos de RI. Afirma que “se uma perspectiva teórica específica brasileira ou indiana para RI existe, essa tradição permanece implícita” (Alejandro 2019: 25)[4]. Isto é, há, no caso do Brasil, teoria, mas ela não é explícita. Para nós, resta a pergunta: pode haver teoria se não é explícita?

Na resposta, Alejandro (2019), no capítulo Diversity, afirma existir potencial para teoria visto o acervo cultural e histórico existente no Brasil, e também na Índia. Concorda, ao menos parcialmente, com Amado Cervo no sentido de que não há teoria plenamente formulada. Ainda assim, devemos precisar melhor: Amado, segundo ela, é o único entrevistado no Brasil que defende a existência de um desenvolvimento nacional teórico/conceitual no país (Alejandro, 2019: 26). Ao que ela acrescenta que há potencialidade. Ideia semelhante à de Wang e Buzan (2014) ao buscarem os potenciais fundamentos de uma escola chinesa de RI. Nesta mesma linha, Lessa (2005) diz que no Brasil a teoria permanece implícita, pois não haveria uma escola brasileira de RI, mas um repositório civilizacional de ideias sobre a política e suas relações inter-estatais.

A teoria não é apenas um problema de formulação e diversidade. Nesse sentido, a preocupação por ela tem consequências importantes. O exame das teorias de RI mainstream é visto por Alejandro (2019) como um dos maiores desafios, uma vez que a própria teoria é identificada como Ocidental. Lembra que Aydinli e Matthews (2008) mostram que a elaboração teórica tem relação direta com o controle da agenda. Nesse sentido Amado (2008b) coincide:

O passo seguinte consiste em afirmar que o alcance explicativo universal das teorias é forjado, visto que se vinculam a interesses, valores e padrões de conduta de países ou conjuntos de países onde são elaboradas e para os quais são úteis, contrariamente aos conceitos, que expõem as raízes nacionais ou regionais sobre as quais se assentam e se recusam estar investidos de alcance explicativo global (Amado Cervo, 2008b:8).

No debate teórico de RI este tema é bem conhecido. As teorias não surgem abstratamente. Resultam de fenômenos que necessitam novas explicações. Isso vale desde as teorias pacifistas (Angell, 2002), até às resultantes da necessidade de reformular teorias de RI à luz de novos acontecimentos (Carr, 2001). Igualmente para as formulações pós-1945, até as teorias chamadas pós-modernas. O que importa aqui sinalizar é que autores como Cox (1986: 211) e Rosenberg (1994), sem qualquer tipo de relação com os temas de Alejandro (2019) e Amado Cervo (2008a, 2018), reportam-se à teoria da mesma forma como o faz este último. Cox é textual:

Desde a Segunda Guerra Mundial, alguns pesquisadores norte-americanos, particularmente Hans Morgenthau e Kenneth Waltz, transformaram o realismo em teoria de resolução de problemas. Por isso pessoas de considerável conhecimento histórico, tendem ao uso de perspectivas a-históricas enquanto quadro de ação característico da teoria de solução de problemas, ao invés de se afastar desse quadro de referência, como o fez E.H. Carr, e tratando-o como historicamente condicionado e portanto suscetível à mudança (Cox, 1986: 25)[5].

Ainda que Alejandro e Amado Cervo não se refiram a este ângulo analítico, há coincidência entre o que diz este último e Rosenberg em aspectos específicos. O que queremos ressaltar é que a respeito das ideias pelas quais Amado Cervo se bate - o da matriz instrumental da teoria desenvolvida sob o patrocínio de Estados ou por grupos sociais - há autores que elaboraram sua perspectiva teórica a partir deste mesmo ângulo:

Qualquer teoria de relações internacionais portanto precisa começar por considerar a singularidade histórica tanto da soberania quanto da anarquia como formas sociais que surgem de diferentes configurações de relações sociais que Marx chamou de modo capitalista de produção e reprodução da vida social (Rosenberg, 1994: 172)[6].

Tudo isto justifica a interpretação de Amado Cervo de que “o alcance explicativo universal das teorias é forjado”? Mesmo reconhecendo, como Cox e Rosenberg o fazem, a possível formulação e uso instrumental das teorias, fica uma séria dúvida sobre a questão de sua inutilidade. Amado Cervo afirma retoricamente não saber porque se dá tanta importância às teorias. Reconhece, no nosso entendimento corretamente, que seu uso não é neutro e que é funcional a interesses. Cabe agora outra pergunta: isso significa inutilidade da teoria? Vejamos de perto como responde o próprio Amado Cervo (2012) a isso:

A teoria das relações internacionais tem uma função cognitiva, explicativa e introdutória ao passo que o exercício do ensino abre novas visões de mundo... Venho me dedicando à formação de conceitos com base social empírica e produzida a partir da história cognitiva e com maior capacidade sobre a investigação, como forma de diminuir os vícios da formação (Amado Cervo, 2012: 33’00”).

          B. As contribuições intelectuais nacionais

Alejandro (2019: 111) identifica a falta de interesse em tradições nacionais de RI nas universidades brasileiras. Por exemplo, pergunta em sua pesquisa: “Q: E entre essa potencial tradição brasileira e o que é produzido nos Estados Unidos, por exemplo... qual você preferiria?”[7]

A autora constata a baixa presença de autores brasileiros nas ementas de disciplinas dos cursos de RI, particularmente nas de teoria. Portanto, um reconhecimento, não explícito, de que a produção teórica, como diz Amado Cervo (2018), seria atributo de autores anglo-saxões. Alejandro identifica também o baixo índice de adaptação dos conceitos e potenciais teorias construídas no Brasil para a interlocução com o público acadêmico internacional, como discute no capítulo The national and the international. Segundo Alejandro (2018: 105), provavelmente em função do viés de algumas entrevistas, pesquisadores brasileiros argumentam que toda teoria parte de uma natureza semelhante internacionalmente. Isto é, aceita-se o pressuposto da não existência de densidade para uma escola brasileira de RI. Para o Brasil, o resultado da pesquisa da autora, aponta à não identificação de programas que colocam como seu próprio eixo abordagens teóricas desenvolvidas no país. Isso resulta da não identificação de parte dos professores de uma teoria brasileira, ou de uma escola brasileira de RI. A preocupação sobre a ausência existe, Amado Cervo (2008b) a explicita:

Contribuir para o fim das teorias de relações internacionais e para sua substituição por conceitos aplicados às relações internacionais propõe-se como caminho para transição do sistema internacional posto a serviço de interesses, valores e padrões de conduta das velhas estruturas do capitalismo para outro que acolhe interesses, valores e padrões de conduta dos países emergentes. Propõe-se evolução mental correspondente à evolução material em curso (Amado Cervo, 2008b:24).

Discussões no Brasil a este respeito vão crescendo de importância, mesmo depois da pesquisa realizada por Alejandro. Mas ainda é incorreto dizer que há uma teoria de RI ou uma Escola brasileira. Tanto é verdade que, como faz constar a autora, pesquisadores brasileiros situam nos anos 60, com a Teoria da Dependência, a oportunidade perdida para um perfil universal da elaboração teórica brasileira. Importante reconhecer a existência de tentativas de debate a esse respeito. Como o diálogo específico desenvolvido por pesquisadores brasileiros de diferentes universidades (UnB, PUC/MG, PUC/RJ), entre outras instituições. Em outra oportunidade, discutimos que há avanços promissores em curso em diferentes instituições (Vigevani, Thomaz, Leite, 2016).

O livro de Alejandro (2019) volta-se à tentativa de interpretar, por vezes explicar, as razões pelas quais os pesquisadores brasileiros e indianos de RI atribuem parte da responsabilidade pelas dificuldades de inserção internacional à dominação ocidental. Disso, surgem consequências e interpretações da baixa presença da produção intelectual brasileira no exterior, além da indiana. Na perspectiva da autora, o risco deste diagnóstico é o de ser circular, de não resolver o problema, incidindo no risco de ser auto-complacente. Há dificuldades concretas. Alejandro (2019: 108) sugere haver autocensura. Para ela, examinada a produção brasileira em RI, há constante busca de legitimação nos autores do mainstream, sobretudo os anglo-saxões. Resulta desta forma de busca de legitimação, a baixa preocupação pela fundamentação das pesquisas em base à própria tradição e conhecimento acumulado. A esse respeito Alejandro (2019) afirma:

Os critérios que organizam a legitimação dos modelos de publicações não são tecnicamente ‘neutros’ mas práticas sociais que naturalizam certas visões das ciências sociais e das relações com seus trabalhos. Desta forma, ambas as dinâmicas permitem etnociências para reproduzir a relação entre pesquisadores Europeus e não Europeus: os pesquisadores Europeus operam como sujeitos capazes de estabelecer critérios de legitimação, enquanto os não-Europeus são objetivados como Outras narrativas alternativas (Alejandro, 2019: 163)[8].

Portanto trata-se também de falta de valorização consistente da própria produção. A este respeito, deve-se reconhecer que Amado Cervo tem insistido, como mencionamos. Na entrevista concedida por ele ao CPDOC (2018), lembra que Bernal-Meza (2005) criou o termo Escola de Brasília. É neste ponto que Amado Cervo discorre sobre a singularidade desta Escola em relação às outras. Amado Cervo, aproveita o reconhecimento de Bernal-Meza para reiterar o que seria o sinal específico dessa escola, o que a diferencia de outro “o confronto epistemológico acadêmico entre teoria das relações internacionais e conceitos aplicados às relações internacionais” (CPDOC, 2018: 22).

Para Amado Cervo, deve-se contrapor o conceito de relações internacionais às teorias universalistas. Os conceitos brotam de... interesses, valores e padrões de conduta de outras sociedades” (CPDOC, 2018: 22). Percebemos aqui mais uma vez a crítica das teorias, identificadas para ele como expressão da hegemonia, ainda que amparadas pelo guarda-chuva do universalismo. Valoriza, mais uma vez, os conceitos. Provavelmente, a partir do diagnóstico sobre as origens multifacetadas e nacionalmente diversificadas dos conceitos, brotam, segundo ele, elaborações que permitem avançar formulações abrangentes criadas pela soma desses mesmos conceitos. Um exemplo, por ele mesmo citado, é “o paradigma do Estado logístico, que vem substituir o paradigma dos anos 90, o neoliberal, fosse um paradigma mais autêntico e mais adequado ao modelo brasileiro de inserção internacional” (CPDOC, 2018: 23).

Amado Cervo de certo modo radicaliza ao afirmar que suas ideias a respeito da teoria de RI estão vinculadas ao combate às armadilhas que possam ser colocadas para o conhecimento. Percebe-se em Amado Cervo, nesta mesma entrevista, algo que podemos interpretar como instrumental. Quando ele afirma que desta forma “a Escola de Brasília procura desenvolver conceitos, alicerçar o conhecimento, o processo decisório, o movimento dos agentes sociais em outras bases. E nós podemos, com isso, corrigir o próprio processo decisório” (CPDOC, 2018: 22). Paradoxalmente, aponta para a utilização normativa/instrumental da teoria. Nestas últimas afirmações, evidencia-se o reconhecimento normativo que os conceitos têm como objetivo intervir no processo decisório.

            C. As limitações do processo de internacionalização

A obra de Amado Cervo, seu livro de 2008a e seu artigo na RBPI de 2008b também, tem escopo abrangente. Ao discutir sua contribuição intelectual para o estudo das RI no Brasil e na América Latina nos deparamos com tema que o preocupa fortemente, e que também é aspecto central do livro de Alejandro (2019), a questão da internacionalização da produção brasileira nesta área de conhecimento e os motivos de seus limites.

A internacionalização, destaca Alejandro (2019), dialogando com Habermas (1971), tem um componente que classifica como de tecnificação, standardisation e naturalização da ciência. Precisamente:

Argumento que este processo de padronização em RI é um exemplo de naturalização da ordem política por meio da tecnificação do conhecimento científico como descrito por Jurgen Habermas em ‘Technique and Science as Ideology’ (1971).... Esta desnaturalização destaca como a percepção desses critérios como ‘padrões técnicos’ ao invés de ‘práticas sociais’ permitem a difusão de hierarquias sociais que podem ser Eurocêntricas (Alejandro, 2019:146)[9].

Portanto, conforme Alejandro (2019), utilizando a referência de Tickner e Waever (2009), o discurso crítico que denuncia o eurocentrismo é eurocêntrico e precisa ser estudado em relação ao contexto social em que emerge. Nesse sentido, a tecnicização das ciências sociais não está concentrada na questão “Ocidental” enquanto europeu ou não europeu, mas no modelo acadêmico Anglo-Saxão de publicação. Os efeitos sociais implícitos da narrativa do domínio ocidental não seriam meros efeitos do passado, mas a naturalização da dinâmica do poder e das práticas desleais que moldam os atuais processos de globalização das R (Alejandro, 2019: 138-139). Utiliza o método indutivo. Isto é, parte da consideração geral do que seriam os processos contemporâneo de globalização e de RI:

A narrativa do domínio Ocidental é Eurocêntrica e naturaliza critérios técnicos de publicação que condicionam a internacionalização das publicações. Impõe significado e interpretações nos temas de internacionalização das RI e participação na área de ‘RI Global’, que protege identidades pré-definidas de serem questionadas por descobertas empíricas e experiências que demonstram seus objetivos emancipatórios (Alejandro, 2019: 159)[10].

Este debate sobre o Eurocentrismo e mais em geral sobre a hegemonia não é novo. Não pode se limitar ao plano da verificação num determinado campo científico. Certamente, se refere a todos eles, e, mais geralmente, à histórica forma de consolidar hegemonias. No plano universal há avanços na busca de análises consistentes, inclusive de parte dos scholars brasileiros da área de RI. Refletindo e avançando na compreensão das razões da predominância, Velasco e Cruz (2004) argumentam:

O antagonismo em torno do qual se constituíram as relações internacionais como campo diferenciado de atividade acadêmica, […] vem se reproduzindo nas ilhargas dos departamentos de Ciência Política e múltiplos think-tanks com conexão estreita com os órgãos encarregados da formulação e implementação da política internacional do Estado norte-americano (Velasco e Cruz, 2014:13).

Embora as contribuições acadêmicas de grupos intelectuais tenham marcado a reflexão brasileira e latino-americana no campo de RI - Teoria da Dependência, Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), Escola de Sociologia e Política de São Paulo  (ESPSP), Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) - com significativa relevância para o desenvolvimento intelectual da área, suas interpretações, por várias razões, não tiveram a possibilidade de elevar-se a referência teórica com impacto universal. Tampouco tiveram, talvez com a parcial exceção das concepções teóricas que deram base à Política Externa Independente (Revista Política Externa Independente, n. 1, 2, 3, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964 e 1965) condições para alcançar o estágio de formulações conhecidas e aceitas no plano universal. Em outras palavras, pela vida conturbada de seu país e pela escassez de recursos não puderam criar definitivamente e em sentido pleno uma Escola Brasileira de relações internacionais.

A produção no campo de RI, brasileira e indiana, emerge no cenário universal, segundo Alejandro (2019: 41) num contexto que ela chama “academic tokenism”. Isto é, há reconhecimento desta produção, de fora para dentro, mas não pleno. Há livros e artigos aceitos por Publishers e Journals, enquanto reflexões competentes e ponto de partida para o adensamento teórico das RI brasileiras e indianas. A idéia de tokenism tem a ver com simbolismo, isto é, há reconhecimento na medida que são aceitos determinados standards e porque estes e outros países têm real papel no sistema internacional e na produção intelectual. Mesmo assim, a aceitação tem para Alejandro (2019) significado simbólico. Ela sugere que a maior inserção internacional da produção intelectual no campo dos estudos de RI de países como Índia e Brasil se, por um lado exige maior reconhecimento, por outro passa pela autovalorização e rigor.

Na interpretação de Brito Cruz (2019), que defende a internacionalização da ciência brasileira, há responsabilidades nacionais por insuficiente inserção universal. Para ele, há “necessidade de aprofundamento teórico baseado nas ideias mais bem estabelecidas para criar nova ciência; o ponto era, a partir de fatos locais passar a conclusões universais...” (Brito Cruz, 2019). Trata-se de valorizar o interesse pelas tradições nacionais de RI não no sentido de auto apologia, mas visando fortalecer seu adensamento, contribuindo para o campo teórico universal. Sistematizando a pesquisa acumulada no tempo, pode-se colocar como objetivo uma Escola Brasileira que tenha como fundamentos a elaboração da experiência nacional, utilizando os conceitos desenvolvidos em outros campos do conhecimento, como direito e economia internacional, e particularmente a própria experiência de política externa. No caso da Índia, Alejandro (2019) considera um dos fundamentos essenciais, a literatura pré-colonial.

Na perspectiva de Acharya e Buzan (2017) ao analisar os motivos pela qual não há um Non-Western International Relations Theory, focalizados no caso asiático, estes autores afirmam que a generalização a partir das singularidades históricas, culturais e identitárias, embora valiosa, não é suficiente para gerar a universalização necessária. Seria preciso enriquecer as teorias de RI com ideias e conceitos, a fim de construir o caminho para um universalismo pluralista. Isto é, ideias e conceitos enquanto fundamentos universais necessários para a compreensão de uma realidade determinada. Para eles, este é o principal desafio intelectual que os estudiosos de RI enfrentam.

Pensando em termos de tokenismo, há aproveitamento do conhecimento desenvolvido no Brasil em RI de parte da comunidade científica internacional, há estudos reconhecidos. Evitar sua atomização no Brasil exige avanço na sua articulação e sofisticação e, no nosso modo de ver, definições precisas das correntes, inclusive maior rigor no diálogo crítico interno e com a ciência universal. Por exemplo, elaborar temas como nacionalismo, desenvolvimentismo, multilateralismo, política externa independente, latino-americanismo e sul-americanismo, de modo a que essa mesma elaboração venha a fazer parte do acervo universal, pela sua capacidade explicativa. Isto não quer dizer que não haja ideias e teorias que apenas podem explicar questões específicas. O “Destino Manifesto” norte-americano do século XIX não tem aplicabilidade direta para outros países, mas faz parte do acervo universal na medida em que seus fundamentos permitem a compreensão da política externa dos Estados Unidos.

Amado Cervo afirma, como mostramos, que a contribuição da Escola de Brasília é a crítica do papel que a teoria anglo-saxã de RI ganhou nos cursos brasileiros. No artigo da RBPI de 2008b, ele sinaliza duas questões principais, a diferença entre teoria e conceito e dá importância ao enfoque nacional e regional. O que queremos ressaltar é que ele de forma direta ataca o papel das teorias. Lembremos que Cox mostra como as teorias além de resultarem de necessidades explicativas de fatos novos, são essencialmente problem-solving. Não hesitamos em afirmar que a formulação de Amado Cervo, provavelmente elaborada sem qualquer vínculo com a obra do Cox, tem certamente coincidências :

[…] o alcance explicativo universal das teorias é forjado, visto que se vinculam a interesses, valores e padrões de conduta de países ou conjuntos de países onde são elaboradas e para os quais são úteis, contrariamente aos conceitos, que expõem as raízes nacionais ou regionais sobre as quais se assentam e se recusam estar investidos de alcance explicativo global (Amado Cervo, 2008: 8).

Nessa perspectiva, este autor insiste na valorização dos conceitos. Além de evidenciar que sua elaboração parte de uma cultura e de uma visão de RI específica, qual seja brasileira e latino-americana, sua crítica à teoria vai no sentido de que a palavra teoria implica, por ter como pressuposto sua condição universal, elevado grau de abstração. Para quem pesquisa RI numa perspectiva histórica, o valor dos fatos é a matéria-prima essencial. Por isso, o papel que atribui aos conceitos, “seja no sentido de produzir compreensão, seja no sentido de subsidiar processos decisórios nas relações internacionais” (Amado Cervo, 2008b: 8).

Para Amado Cervo há forte preocupação com a necessidade de ver o conjunto da teoria mainstream com olhos críticos. Ele mesmo insiste que deste modo se cria o environment que enfraquece o prestígio das teorias de RI nos programas de ensino e assim se fortalecem o que define como conceitos produzidos nacional ou regionalmente. Alejandro (2019: 198) em seu livro ao comparar os pesquisadores acadêmicos de RI na Índia e no Brasil, mostra como a inserção na política do país é menor no Brasil. Amado Cervo com sua reiteração sobre a importância dos conceitos e sua crítica às teorias nos programas dos cursos universitários tem como objetivo criar as condições para influenciar no processo decisório nacional.

Amado Cervo (2012) como professor universitário com destacado papel no Brasil e no exterior, ao mesmo tempo em que critica as teorias mainstream, valoriza o intercâmbio acadêmico. No sentido de compreender a formação dos conceitos gerados nas diferentes sociedades. Visto que valoriza a diversidade dos padrões de conduta e não sua padronização. 

Ele próprio tem parte importante de sua formação no exterior, sobretudo na França. Por isso reconhece, questão que Alejandro identifica como especificidade brasileira da maior importância, a experiência que dá aos pesquisadores, oportunidade de estudo e diálogo com outras escolas. Amado Cervo (2012) identifica no intercâmbio um melhor patamar para que o pesquisador brasileiro avalie a própria qualidade da pesquisa, inclusive fortalecendo seu senso crítico e complementa seu raciocínio ao afirmar que a ampliação dos contatos internacionais aumentam as possibilidades de internacionalizar a produção nacional e o reconhecimento da publicação no âmbito de sua comunidade epistêmica.

Conclusões

1. A pergunta que fizemos: pode haver teoria se não é explícita?, tentando compreender as colocações de Alejandro (2019) no capítulo Diversity. Podemos agora responder dizendo que no seu livro a questão tratada refere-se à proto-teoria. Isto é, ela sugere que a ciência, os conhecimentos, a própria forma de pensar o mundo e a política externa constituem elementos suficientes para formular uma teoria explícita de RI brasileira, mas também indiana, generalizante, mas que ainda não existe. Sugerimos ser isto “teoria não explícita”.

2. Justifica-se a interpretação de Amado Cervo de que o alcance explicativo das teorias é forjado? Acreditamos que não. Nossa leitura de sua obra e de seus textos especificamente utilizados aqui, remete a crítica da teoria ao possível uso instrumental que dela pode ser feito. Sua vinculação a interesses, valores e padrões de países tem fundamento e encontra respaldo, como vimos, em outras leituras teóricas de RI. Portanto seu alcance explicativo, como ele afirma, é funcional à reprodução da dominação. Isso não elimina a necessidade de fundar teorias explicativas.

3. A teoria é inútil? Amado Cervo afirma que a teoria de RI tem uma função cognitiva, explicativa e introdutória. Portanto, é útil. A teoria certamente não explica tudo. “Uma teoria pode nos ajudar a compreender e explicar fenômenos e acontecimentos ainda que não seja um instrumento útil para previsões” (Waltz, 1986: 335)[11]. Amado Cervo, acreditamos poder afirmar, apresenta respostas não definitivas. Insiste na vantagem dos conceitos, opondo-os à teoria. Mas ao reconhecer-se na Escola de Brasília, aceita que os conceitos são formados a partir da história cognitiva. A leitura de Alejandro sobre a teoria não explícita sugere que os conceitos não estão em oposição a teoria, mas constituem um de seus fundamentos.

4. A pergunta de Alejandro (2019: 111), procurando compreender o baixo interesse pela teoria de RI desenvolvida no Brasil, não alcançou conjunto suficientemente representativo dos scholars do país. Parte das respostas que reconhecem o desenvolvimento teórico anglo-saxão devem ser complementadas pelo reconhecimento dos esforços visando o desenvolvimento de uma Escola de RI já existentes. Não se trata de reconhecer que os fundamentos epistemológicos de uma teoria não necessitam ter origem nacional, mas de captar o aprofundamento teórico no Brasil já em curso.

5. Há uma teoria brasileira de RI? Dissemos que a resposta de Alejandro seria intermediária, não há um corpo teórico pleno, mas há bons fundamentos para avançar. Amado oferece outra resposta, a Escola de Brasília representa a tradição brasileira em RI, para ele reconhecida por scholars como Bernal-Meza e Mario Rapoport.

6. Continuidade e ruptura na política exterior brasileira é um tema também discutido por Amado Cervo no conjunto de sua obra. Em entrevista à Revista Exame (novembro 2018), depois do segundo turno das eleições presidenciais no Brasil, afirma que “não haverá ruptura na política exterior. [...] A política exterior brasileira apresenta há séculos três traços que compõem a estratégia de longo prazo: universalismo, cooperação e pacifismo” (). Nesse caso, apesar da crítica de Amado Cervo à teoria, parece confirmar-se que, como escreveu Waltz  (1986) , ela explica os fenômenos, mas não ajuda nas previsões.

7. Como pode-se notar, a discussão do livro “Western Dominance in International Relations?” de Alejandro (2019) e dos escritos de Amado Cervo relativos à teoria e conceitos de RI foi importante e ilumina a respeito de temas fundamentais no mundo e no Brasil. Reconhecemos que o Gate-Keeping é efetivamente existente. Essa nossa resenha do livro e a análise da obra de um historiador-intelectual que comemora 80 anos, o incorpora. Também utilizamos teorias eurocêntricas, sobretudo anglo-saxãs.

 

Notas

[1] We can conclude that the English School does not make the case for national approaches to IR theory. Indeed, a good part of the explanation for its success is precisely that it eschewed parochial concerns and aimed to construct theory at the global level. Along the way it generated a characteristic taxonomy and set of concepts. Linked to its validation of history is its validation of an explicit turn to classical political theory as a source for normative IR theory...Perhaps these intertwinings and synergies will develop as the Chinese School becomes global...It is already apparent that more and more foreign scholars are joining in the Chinese discussions on Chinese history and political theory” (Wang and Buzan, 2014: 44-45).

[2] “We conclude by looking more closely at one specific example of the kind of theorizing from Asia that might have wider application: the hierarchical traditions and models of Confucian Northeast Asia. There may well be other hierarchical traditions from Asia that can be used in this way. […] China has spent the last few years increasing its military strength, being increasingly assertive toward its neighbors, and throwing its newly acquired weight around. Japan has turned toward reacquiring the characteristics of a ‘normal’ state. [...] In some ways, this matters to what we said above about national schools of IR and the role of Asia in making Global IR” (Acharya and Buzan, 2017: 361-362).

[3] “The book Inserção internacional: Formação dos conceitos brasileiros written by Amado Cervo offers an overview of IR concepts used in Brazil (2008a). It aims at showing the contribution of Brazilian academic and non-academic analysts in the context of the country’s history” (Alejandro, 2019: 25).

[4] “If a specifically Brazilian or Indian theoretical approach to IR exist, these traditions remains implicit” (Alejandro, 2019: 25).

[5] Since the Second World War, some American scholars, notably Hans Morgenthau and Kenneth Waltz, have transformed realism into a form of problem-solving theory. Though individual of considerable historical learning, they have tended to adopt the fixed ahistorical view of the framework for action characteristic of problem-solving theory, rather than standing back from this framework, in the manner of E. H. Carr, and treating it as historically conditioned and thus susceptible to change “(Cox, 1986: 25).

[6] “Any theory of international relations therefore needs to begin by grasping the historical uniqueness of both sovereignty and anarchy as social forms arising out of the distinctive configuration of social relations which Marxs called the capitalist mode of production and reproduction of social life” (Rosenberg, 1994:172).

[7] Q: And between this potential Brazilian tradition and what is done in the United States, for example… what would you prefer?”

[8] “The criteria organising the legitimation of models of publications are not ‘neutral’ techniques but social practices that naturalise a certain vision of social sciences and relationships with work. As such, both dynamics enable ethnosciences to reproduce a relationship between European and non-European scholars: European scholars operate as subjects capable of establishing criteria of legitimation, while non-European scholars are objectified as narrated alternative Others” (Alejandro, 2019: 163).

[9] "I argue that this process of standardisation in IR is an instance of the naturalisation of the political order through the technicisation of scientific knowledge as described by Jürgen Habermas in ‘Technique and Science as Ideology’ (1971).This denaturalisation highlights how the perception of such criteria as ‘technical standards’ rather than ‘social practices’ enables the diffusion of social hierarchies that happen to be Eurocentric" (Alejandro, 2019: 146).

[10] “The narrative of Western dominance is Eurocentric and naturalises technical criteria of publication that condition the internationalisation of publications. It imposes meaning and interpretations on the question of the internationalisation of IR and participation to ‘Global IR’, which protect pre-defined identities from being challenged by empirical findings and counter-perform its explicit emancipatory objectives” (Alejandro, 2019: 159).

[11] “A theory may help us to understand and explain phenomena and events yet not be a useful instrument for prediction” (Waltz, 1986: 335).

 

Referências

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Pour citer cet article
Andre Sanches Siqueira Campos, Tullo Vigevani,
"O Domínio Ocidental e a Formação de Conceitos para uma Escola Brasileira de Relações Internacionais", RITA [en ligne], n°13 : novembre 2020, mis en ligne le 10 novembre 2020 . Disponible en ligne: http://revue-rita.com/synthese-13/titre-andre.html