À margem da margem: a TransMissão das escritoras Negras brasileiras
En marge de la marge : la TransMission des écrivaines Noires Brésiliennes
Resumo
Nesse artigo discuto a noção de periferia partindo de preconceitos construídos pelo paradigma da carência. Demonstro como a escrita de autoras negras e periféricas é essencial para elaborar uma outra imagem de si, diferente dos estereótipos vinculados às pessoas colocadas à margem. Se a escrita de autoras negras busca um vínculo na transmissão de memórias silenciadas para se construir uma genealogia positiva, a poesia slam celebra em sua performance um gesto entre arte e ativismo para enraizar o lugar da mulher negra na sociedade e decolonizar o corpo negro. Concluímos que essas produções trazem elementos de identificação positivos para essas atrizes da margem do mundo.
Palavras-chave: Periferia; Autoras Negras; Transmissão de memória; Escravatura; Poesia Slam.
Résumé
Dans cet article, je discute la notion de périphérie basée sur des préjugés construits par le paradigme du manque. Je démontre à quel point l'écriture d'autrices noires et périphériques est essentielle pour créer une autre image d'elles-mêmes, différente des stéréotypes liés aux personnes placées en marge. Si l’écriture des écrivaines noires cherche la transmission de mémoires réduites au silence pour en construire une généalogie positive de se reconnaitre noire, nous verrons que le rôle de la poésie slam célèbre dans sa performance un geste entre art et activisme pour enraciner la place des femmes noires dans la société et décoloniser le corps noir. Nous concluons que ces écritures apportent des éléments d'identification positifs à ces actrices de la marge du monde.
Mots-clés : Périphérie; Autrices noires; Transmission de mémoire; Esclavage; Slam Poésie.
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Fernanda Vilar
Consultora - UNESCO
Doutora em Literaturas africanas comparadas - Université de Paris Nanterre
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Reçu le 11 octobre 2020/Accepté le 12 juillet 2021
Á margem da margem: a TransMissão das escritoras Negras brasileiras*
Introdução
Quando pensamos em periferias e nos cidadãos e cidadãs pertencentes a este lugar, emergem representações sociais que orientam nosso olhar e que são construídas com base nas ideologias, paradigmas e conceitos que estabelecem visões distorcidas do real. Somos levados a pensar o espaço periférico a partir da “carência” (Silva, 2011: 49) o que dificulta elaborarmos esses locais como uma potência inventiva e plural, onde a periferia urbana pode ser uma proposta de futuro (Fofana, 2017). A periferia, entendida como localização espacial e formação sociocultural, é um conceito que se baseia não apenas na ideia de estruturas de poder desiguais entre centros e margens, mas também na ideia de conectividade e relacionamento (Peeren, Stuit, Van Weyenberg 2016). Essa complexidade conceitual mostra, por exemplo, a maneira pela qual as relações das periferias com os centros são frequentemente marcadas por uma mistura de admiração e hostilidade. Isso é reiterado por Roberto Vecchi no verbete Periferia-Periférico do Abecedario Postcoloniale: as periferias existem não apenas como um lugar, mas sobretudo porque há uma relação entre dois polos que estão vinculados de maneira desigual (2004: 221).
No contexto urbano contemporâneo, a população que habita esses locais está também estereotipada de acordo com uma relação de percepção díspar: geralmente são racializadas como não brancas e inserem-se num sistema que dificulta a sua inclusão dentro dos parâmetros e privilégios acordados às populações que estão no centro. Ser mulher, negra e periférica é acumular elementos para a exclusão no contexto brasileiro.
Se a representação simbólica do real é mais importante do que o real, quando uma autora das margens tem acesso ao sistema de produção e difusão de seu trabalho, ela consegue emitir uma outra representação de si. Ao verem-se como sujeitos ativos no processo de definição de suas identidades, os sujeitos periféricos podem questionar o sistema de representação que davam suporte e justificação a uma ideia distorcida da periferia. O processo da arte à margem e da arte da margem propicia uma nova concepção de cultura e a formação de identidades periféricas (Pimentel, 2019).
Nos últimos vinte anos vivemos uma primavera periférica, responsável por produzir uma cultura significativa no Brasil. Podemos citar nomeadamente a FLUP (Festa Literária das Periferias) e notar a emergência de editoras independentes que publicam autores marginais social e geograficamente e que, pelo interesse que suscitam ao tratar o tema das periferias por esse olhar inédito, são traduzidos no exterior, como pela editora Anacaona, em França, que busca projetar vozes alternativas no circuito literário.
Somam-se a esses vetores de difusão (feiras, festas e edições), o acesso a “amplificadores” (tecnologias que permitem tirar fotos, gravar e publicar), como é o caso atualmente com o acesso a internet e aos smartphones. As periferias são entre-lugares onde circulam diferentes sujeitos e onde são produzidas e negociadas as identidades que hoje podem ser ouvidas e conhecidas apesar de todas as barreiras que lhes são impostas. Vide o sucesso de KondZilla, jovem produtor e empresário dos funks das favelas que recentemente dirigiu uma série para a Netflix, “Sintonia” (2019).
No legado dos estudos pós-coloniais, houve uma preocupação global em revisitar a história daqueles que foram deixados nas margens por longo período, sendo esquecidos ou desprezados. A criação de um espaço para debater as periferias é um assunto que está em voga nos últimos 30 anos, especialmente no olhar que se coloca sobre o sul global e, mais atualmente, nas relações Sul-Sul. Nei Lopes, escritor afro-brasileiro, argumenta: "o que se espera sair da pena de um escritor afrodescendente é o espetáculo da miséria, da violência, da exclusão. Exatamente para que cada um fique “no seu lugar”. Eu sei que o nosso povo tem uma outra História e outras histórias" (Torres, 2015). Essas outras histórias é o que é resgatado pela escrita das autoras que trataremos nesse artigo; Roberta Estrela D’Alva[1], Luiza Romão[2], Kika Sena[3] e Bell Puã[4] são poetas de slam poetry e carregam em sua performance poética o ímpeto de transmitir e preservar uma memória que correria o risco de ser silenciada por mais séculos.
O slam surgiu inicialmente na década de 1980, em Chicago, produzido por um empregado da construção civil, Mark Smith, dentro de uma estrutura de cabaré. Por isso Tatiane Lohmann define o slam como “uma ferramenta de organização de comunidade, de exercício da cidadania, de liberdade de expressão, lugar de encontro que não depende de nada, a não ser de pessoas[5]”. Há três regras básicas para essa competição de poesia: apresentar três poemas autorais, de até três minutos, sem o uso de acompanhamento musical e nenhum tipo de adereço ou figurino — é o/a poeta e a palavra. Essas autoras fazem de seus escritos uma história duplamente coletiva : de mulheres negras e de comunidades marginalizadas.
A arte da poesia slam é um OVNI (objeto literário não identificado) que mistura literatura, performance e ativismo. Esse tipo de criação artística “deslocada” tem o mérito de se posicionar diretamente numa corrente que visa descompartimentar o pensamento e sobretudo, perceber e definir o centro desde as margens, e não a margem desde o centro (Malela et al., 2019:8).
Neste artigo, além de estudar a periferia entendida a partir de sua potência de criação através da poesia slam, tomaremos também exemplos da literatura e, assim, demonstrar como as diferentes autoras disputam a hegemonia dos campos de poder. Rompendo com os lugares que lhes são normalmente reservados, analisaremos alguns trechos das obras de Conceição Evaristo[6], Miriam Alves[7], Esmeralda Ribeiro[8] e Bianca Santana[9], expoentes contemporâneos de autoria feminina de memória e resistência negras.
No slam e na literatura, essas escritas (quase) autobiográficas fazem parte de um movimento que Paul John Eakin (1985) chama de « identidades relacionais », onde a vida do narrador é relatada de maneira inextrincável dos eventos históricos onde ocorrem. Assim, falar dessa produção é uma maneira de colocar essas personagens sob o holofote das mudanças estruturais que ocorreram no Brasil nos últimos anos.
As autoras negras brasileiras são obrigadas de certa maneira a enfrentar sozinhas problemas sociais cuja origem é coletiva. Toda prática artística, quer ela vise denunciar ou apenas questionar circunstâncias, é assumida por um indivíduo que é uma autoridade que se impõe na margem: não se trata apenas da habilidade da artista ou da escritora, mas sobretudo da correspondência entre o trabalho criado e o eu autêntico da criadora, não trata-se apenas da competência, mas também da experiência e de seu estatuto dentro da margem.
Tratarei numa primeira parte do que chamo “escrita relacional”, isto é, a questão da memória e seu resgate, para entender como a mulher negra de hoje se vê na sociedade. Num segundo momento discutirei a descoberta de uma alteridade negativa devido a cor da pele ou cabelo. Finalmente buscarei compreender como a repetição dos temas da memória, escravidão, silenciamento e racismo são um apelo a mudança ideológica.
I. A reabilitação da memória pela escrita
Michel Foucault, em Arqueologia do Saber (1972:51), desenvolveu o conceito de formação discursiva para reagrupar textos em que há pressupostos culturais semelhantes, discursivamente dados e marcados por conjunturas históricas específicas. Nesse sentido, considero a escrita de mulheres negras criadora de pontes entre um passado e um presente em que suas vozes e experiências foram praticamente silenciados. Atualmente, as escritoras intervém numa construção discursiva que visa encontrar um espaço de legitimação e de recuperação da memória. O poema de Conceição Evaristo "Vozes-Mulheres" articula a ideia de resgate da memória à urgência de dar voz aos que foram obrigados a silenciar:
A voz de minha bisavó ecoou
criança nos porões do navio.
Ecoou lamentos
De uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
(Evaristo, 1990: 10-11)
Conceição Evaristo faz uma genealogia da voz negra da mulher. Ao mesmo tempo que ela fala do individual, lê-se o universal. Quando ela fala que a voz de sua bisavó ecoou nos porões de um navio, ela nos remete ao tempo da captura e escravização de pessoas negras oriundas de África. A sua avó é a geração que continuou a trabalhar servilmente durante e/ou após a época da escravatura. A mãe é a “Dona Benta” do imaginário brasileiro que trabalhava em moradias de pessoas brancas, porque com a abolição da escravatura nenhuma política publica foi feita para mitigar os danos da falta de acesso a uma cidadania plena aos cidadãos negros, que continuaram sendo tratados subservientemente. A casa dela era na periferia da cidade, no conjunto de marginalizações a que se chama favela. Conceição Evaristo esta no limiar das gerações, entre as que ainda estavam agrilhoadas, por isso “rimas de sangue e fome” e as que podem fazer “versos perplexos” – como a escrita de Carolina Maria de Jesus ou, anteriormente, de Maria Firmina dos Reis que em 1859 publicou “Úrsula”. A voz da filha é aquela que vai falar em nome de todas as outras – como o fazem as poetas do slam que veremos adiante. A poeta deposita em sua filha a possibilidade de realizar o que as outras gerações não puderam e viver plenamente em liberdade. Podemos observar a mesma preocupação em marcar a história da escravidão e sua continuidade do racismo no Brasil no poema "Fato", de Esmeralda Ribeiro (1994-1995:86). Trata-se de um micro-poema, como um haikai misturado a poesia concreta em que com cinco palavras, pelo menos um século de história nacional é traduzido. A poeta também denuncia que o fim da escravidão não marca o fim do pensamento e ações marcadas pela colonialidade. A condição da pessoa negra é ainda subalterna e por isso acarreta muitos riscos a sua vida, como demonstram os números de assassinatos e encarceramento de pessoas negras no Brasil em pleno século 21:
Aboliram Escravidão
A
não condição
Essa preocupação do resgate de memória e da criação de identidades relacionais da vivência de mulheres negras pode ser lido no poema de Miriam Alves. A poeta reforça igualmente a ideia de que a condição subalterna da mulher negra não foi abolida com a escravidão. Por isso, no poema, o vocabulário da cozinha se mistura aos vocábulos para narrar a vida de uma mulher negra. A carne é uma metáfora, ela queima na panela e a panela queima a carne. Os sentimentos são ralados. Toda a existência negra personifica-se na transformação do alimento. A carne negra torna-se uma mercadoria como o alimento a ser processado numa cozinha. O poema narra o silêncio de memórias que não puderam se expressar :
Minha carne queimou
na panela
Minh’alma penou no porão
d’algum navioMinha cabeça
conserva lembranças na geladeira
da resistência
[...]
ralo sempre os sentimentos
no ralador de queijo
[...]
Minha carne queima na
panela
cozida com molhos
incertosMinh’alma transita
outro mundo
fujo para voltar
[...]
Calo-me para poder
gritar
arrebentando as algemas
de dor
(Alves, 1984 : 99)
No poema, passado e presente são colocados em constante presença, como no último verso, onde a algema da dor evoca a condição de escravo e que apenas agora podem ser arrebentadas com o poder da palavra. A transmissão da memória familiar e o questionamento da história oficial são constantes na poesia de mulheres negras, que buscam transmitir em sua escrita aquilo que foi passado apenas no âmbito familiar. A possibilidade de terem hoje um espaço de expressão onde podem ter sua voz legitimada faz com que muitos dos temas que antes não integravam os livros de história no Brasil possam ser discutidos finalmente a partir da literatura. Quer dizer, se anteriormente a história era contada apenas do ponto de vista do homem branco e os negros tinham sua humanidade e vivências invisibilizadas pela condição da escravatura, a voz literária permite fazer existir como sujeito pessoas cujas histórias foram eliminadas de uma narrativa. A escrita da pós-memoria, quer dizer, daquilo que não se viveu, mas que foi transmitido, é uma maneira de prestar contas a uma história que possui muitas lacunas.
Quando uma artista faz uma performance slam, ela está igualmente trazendo para o debate público dores que estavam na “geladeira da memória”. Os temas do slam derivam do quotidiano dos poetas e das questões de atualidade. Refletem em geral as preocupações da sociedade e muitas vezes interrogam alguns de seus tabus — como escravidão, imigração, racismo, sexismo e colonialismo. O racismo é uma das heranças coloniais mais persistentes e seu antídoto está sendo preparado por esta geração que compreende a riqueza de suas diversas origens e que consegue trabalhar diferentes subjetividades pela afirmação de sua alteridade, como expressa Roberta Estrela D’Alva:
Abrem-se as portas, e a Diáspora levanta-se espanta
a dor, o medo, a dúvida, inseguranças, desconfianças,
complexos de inferioridade, inconsciência, esquecimento.
Não dá mais para disfarçar, a hora é agora, chegou o momento.
Identidade. Qual é a sua? Quem é você? Os seus pais? E os pais dos seus pais?
Qual a origem da sua cultura? De onde vieram os seus ancestrais?
(D'Alva, 2017)
Nesse poema-slam, apresentado na final da Copa Mundial de Slam de 2016, em Paris, Roberta Estrela D’Alva retoma o trauma inaugural das pessoas traficadas e escravizadas no Brasil e que tiveram apagados os traços de seus ancestrais. A quem foram negados qualquer forma de pertença ou identificação que resultaram em séculos de complexos de inferioridade. Se as origens são evocadas com orgulho pela população branca do Brasil, que pode retraçar a ascendência europeia de seus familiares, isso é negado a maioria dos negros, que tiveram sua história resumida a condição de escravo. Essa violência é tão grande que impacta até hoje as estruturas da sociedade brasileira e justifica de certa maneira discursos embebidos no formol do racismo estrutural. Roberta ao performar seu slam sabe que ocupa uma posição distinta no mundo a partir do momento que se interroga quem é e questiona porquê suas origens foram apagadas. Seu slam é uma crítica ativa de uma sociedade que ainda está prenha de colonialidades geográficas e psíquicas, isolando sujeitos periféricos nas periferias da cidade e invisibilisando-os quotidianamente, sem dar espaço para que se representem.
É o que se revela na poesia de Bell Puã (2018), que descreve a tensão entre uma memória branca e apaziguada de uma memória não-branca em perpétua sofrência. A conversa entre duas brancas revela o bem-estar delas enquanto sujeitos que sabem onde está a sua raiz e podem evocar com orgulho países europeus e a visita a seus antepassados. Já a pessoa negra tem toda sua historia de pertencimento e também cultural apagada do espaço publico brasileiro. Apenas recentemente o tema das africanidades entrou no currículo como maneira de facilitar a afirmação do sujeito negro e que ele pudesse reconhecer de maneira positiva suas origens. Independente disso, ainda é o racismo que domina a maior parte das instituições no Brasil e o privilégio é apenas para o grupo branco:
ouvi duas mocinhas brancas
declamarem seu passado
não filando
fofoca de ônibus
mas num restaurante caro
falavam dos méritos
de seus ascendentes
uma tinha avô cheio de herança
a outra um avô advogadodois avós que desbravaram
a Europa
eu cheguei aqui de pára-quedas?
vovô andava malandro
pelo centro carioca
descalço, apelidado de macaco
preso duas vezes sem sequer
um crime de fato
por 30 anos porteiro de edifício chique
em Copacabana
recebia ordens de um seu Raimundo
“Elias, preto e funcionário
só entra pelos fundos”
a memória de vovô ecoava
enquanto ainda escutava
sobre a avó de fulana
que morou, aos 15,
em Miami
meu peito ardia
ao pensar que vovó
desde os 9
limpava chão de madame!
quanta humilhação
sofrimento
só pra mainha estudar
segundo Gilberto Freyre
branca pra casar
mulata pra foder
negra pra trabalhar
entendi logo cedo
privilégio de branco rico
não é só dinheiro, conforto
ser o mais bonito ou
ter cara de doutôr
é a sociedade ter mais empatia
com a dor deles do que nossa dor(...)
O racismo estrutural como herança violenta do colonialismo é tratado também em “Mãe Gentil” de Luíza Romão, que revisita de maneira crítica a história do Brasil e faz da poesia um grito feminista. Ao analisar as colonialidades que permeiam o imaginário nacional, Luíza Romão remete ao estupro enquanto imagem fundadora da colonização. O poema dela é repleto de referências sexuais para interrogar tabus e a história do Brasil ao mesmo tempo. O pau-brasil e as matas virgens, a espado do imperador ou generais e o ápice da censura no Brasil com o AI-5. Da colonização até hoje, a poeta narra uma série de abusos que construíram o Brasil:
Eu queria escrever a palavra Brasil colônia produto perfeito
PAU-BRASIL,
[…]
A COLONIZAÇÃO, ELA COMEÇOU PELO ÚTERO
matas virgens, virgens mortas
A COLONIZAÇÃO FOI UM ESTUPRO!
Deodoro metendo a espada entre as pernas
de uma princesa babel
Pedro ejaculando-se dom precoce
Costa e Silva gemendo cinco vezes
AI AI AI AI AI- AI 5(...)
(Romão apud D’Alva, Lohmann, 2017).
A performance slam provoca no público o desconforto e o questionamento quando aborda temas que não foram tratados de maneira complexa no debate público. Quando uma mulher sobe no palco para denunciar a cultura machista e de estupro que domina a sociedade brasileira a partir de sua invasão colonial, ela está invertendo a ordem e a hierarquia de dominação. A cena slam é poética e política, é um local feito pela e para a periferia, criando um espaço onde o público pode identificar-se com os temas e refletir sobre seu percurso e as alteridades.
A poesia de Conceição Evaristo repete muitas vezes a palavra voz e ecoar para denunciar a condição das mulheres negras que por gerações somente podiam ser escutadas por elas mesmas, falando sozinhas num espaço vazio, obtendo o eco como resposta. Na sequência Esmeralda Ribeiro atesta que o fim da escravidão não eliminou a condição do negro escravizado. E é nesse sentido que escreve Miriam Alves ao evocar o corpo flagelado e suas dores, reduzidos a um espaço doméstico e as tarefas rotineiras. Sem possibilidade de progresso na condição subalterna, nasce a necessidade de calar para que o silêncio, um dia, se transforme em grito de liberdade. Esse grito hoje é uma performance na cena slam, ele libera-se nas vozes das poetas que declamam seus poemas. Elas que ocupam o palco e fazem dele um campo de batalha.
É muito interessante notar a sequência voz, eco e silêncio que saltam aos olhos numa primeira leitura. O que hoje podem exprimir essas autoras faz parte do que Eni Orlandi chama de "política do silêncio". Essa política tem uma dimensão ligada à retórica da dominação e da opressão, provocando como contrapartida um comportamento de resistência. O silenciamento é nesse caso revelador de outros significados dos não-ditos. A escritora negra revela sua história e resgata ao mesmo tempo suas memórias e seus silenciamentos. Se o silenciamento permitiu por um longo tempo ceder a narrativa da história a uma determinada classe, que menosprezou um passado de escravidão, tráfico e cativeiro, aquilo que foi uma vez silenciado hoje se torna matéria de escrita e poderá tornar-se revisão da história. Concluo essa parte com as palavras de Conceição Evaristo:
Gosto de escrever, na maioria das vezes dói, mas depois do texto escrito é possível apaziguar um pouco a dor, eu digo um pouco… Escrever pode ser uma espécie de vingança, às vezes fico pensando sobre isso. Não sei se vingança, talvez desafio, um modo de ferir o silêncio imposto, ou ainda, executar um gesto de teimosa esperança. (Evaristo, 2005:202).
II. Escrever-se negra: decolonizar o corpo
A resistência está também no gesto de assumir a cor de pele, em reconhecer seu valor apesar dos discursos que deformam a percepção do valor de uma pessoa devido a sua origem, a base de uma sociedade racista, como evidencia a poesia-slam de Kika Sena :
Tingi tudo de preto
Sou Tição, Tição, Tição
Pós-apocalipto
Brasa forte, pior do que deuses ditadores
Num mexe, num mexe, num mexe,
Comigo não...
Porque à dor, à dor, à dor
Eu sei reagir!
(Sena apud D’Alva, Lohmann, 2017)
O corpo para a mulher, e sobretudo para a negra, é um material político. O conceito de corpo colonial do pensador afro-caribenho Frantz Fanon permite-nos compreender como a apropriação do corpo na contemporaneidade é a chave de sua decolonização. A escolha da palavra decolonizar é importante nesse contexto pois trata-se de uma postura e atitude contínua de questionar a herança colonial. Ademais, como Catherine Walsh[10] assinala: “O decolonial denota um caminho contínuo de luta no qual podemos identificar, tornar visíveis e incentivar “lugares” de exterioridade e construções alternativas”. Entre os vários desafios encontrados, as escritoras negras se deparam com um dilema: por um lado, o desejo de forjar sua própria identidade, que resistiria à hegemonia da cultura branca dominante (corpo decolonizado) e, por outro, a tentação de subscrever as leis do mercado literário e produzir histórias em que a identidade "étnica" é domada, diluída e até mais exótica e outras (corpo colonial).
Nesse sentido, as questões ligadas ao corpo ganham dimensão de luta política, e aparecem como uma arena privilegiada para tornar visível o “corpo colonial” como resistência na esfera pública, a partir de sujeitos que afirmam sua humanidade frente a opressões que os desumanizam (López, 2015: 305)
O slam, como material poético e artístico híbrido, é uma forma de arte que permite o reconhecimento de diferentes formas de saber e de estar no mundo. É uma ferramenta de auto-determinação de comunidades marginalizadas que podem encontrar ouvintes que compartilham os mesmos pesares. Enquanto forma de arte democrática, encontra raramente barreiras: as línguas se misturam, assim como as origens e os gêneros. Como vimos nos exemplos citados, o mal-estar é transformado em lirismo, a estética e a vivência são as fontes do fazer poético.
Na continuidade da ideia de romper silêncios e escrever a história, cito a contracapa do livro Quando me descobri negra, de Bianca Santana, publicado em 2015: “Tenho 30 anos, mas sou negra há apenas dez. Antes eu era mestiça”. Conta Bianca em seu livro que ela só se descobre negra aos 20 anos, pois um professor de um cursinho popular em que ela se candidata para trabalhar diz que será bom ter uma professora negra – e é a primeira vez que ela percebe o fato de maneira positiva. A partir desse momento ela consegue se situar no mundo, explicar a si o que não havia entendido, encontrar uma pertença a um grupo e a uma luta. É a decolonização de seu corpo.
Esse momento de descoberta da cor da pele e da existência de um grupo oprimido é matéria do poema "Trocar de máscara", de Esmeralda Ribeiro (1992:51):
Cismo: a pele em roupa não tem mais razões,
para ser trocada e assim
me recolho e me cubro com a mortalha
De anulações.
Nessa passagem do poema, Esmeralda Ribeiro está ainda habitando as dores do corpo colonial, domesticado e anulado. Experiência similar é relatada por Miriam Alves no conto "Um só gole". Quando criança se deparou com a versão branca da escravidão: Maria Pretinha queria ser Nossa Senhora no teatro e foi ridicularizada por seus colegas. Esse episódio deixa marcas na mulher adulta que acaba tomando o modelo de identificação branco como única oportunidade de ser aceita. Maria Pretinha, nesse mesmo conto, ao tentar alisar o cabelo com ferro quente, acaba por se queimar e carrega uma cicatriz esbranquiçada no rosto - uma metáfora de castigo por tentar transgredir o espaço a ela reservado. Se essas autoras estão transmitindo a dor do corpo colonizado e suas limitações, no slam o discurso transgride esse espaço dosmeticado e ganha garras e força na performance da voz. Entretanto, recentemente, livros que foram publicados sobre a relação das mulheres e seus cabelos mostra como o século XXI está possibilitando assumir o corpo negro decolonizado.
Em nossas relações sociais e profissionais a expressão dos cabelos está diretamente ligada a sobrevalorização do modelo branco europeu como única forma de beleza. É pelo cabelo que as crianças negras começam a entender que há algo de errado com elas. Em vários livros essa relação problemática com os cabelos aparece: Bianca Santana relata que sua avó puxava e prendia seus fios para trás para que o cabelo parecesse liso e controlado. Quando ela decidiu, já adolescente, liberar seus fios, não conseguiu ir além de 100 metros de seu cabeleireiro. Parecia que todos os olhares estavam sobre ela, condenando a escolha feita. Ela aprendeu fazer um penteado com trancinhas - e que usou durante dez anos. Quando passou a se reconhecer negra, soltou os cabelos e comprou um turbante. Foi a uma entrevista de emprego. Foi chamada de corajosa, por ousar assumir a estética negra. A palavra coragem incomodou a autora, que escreveu sobre o fato, para concluir que ela tem todo o direito de assumir sua identidade sem ter que enfrentar conflitos pré-programados em uma sociedade racista.
Sônia Fátima Conceição decide em um poema assumir sua beleza negra e elogiar seus cabelos e suas formas negras:
Lá vou eu, sem mais aquela, cabelo pixaim e bela.
Uma bunda grande sem qualquer trela que cubra ela.
Bela sei que sou e vou bela.
[...] E lá vou eu de novo, em busca de um lugar onde eu possa ser
bela.
Cabelo pixaim, bela, bunda grande sem qualquer trela que cubra ela,
bela.
(Conceição, 1983: 55)
A repetição do tema dos cabelos ou a descoberta da cor da pele não se limitam a esses exemplos. A literatura africana e afro-americana aborda frequentemente o tema. Podemos citar o romance Their eyes were watching God, de Zora Neale Hurston, publicado em 1937, em que a narradora não consegue se reconhecer numa foto em grupo aos 6 anos de idade. Todos são brancos, e ela é a negra da foto: sua descoberta provoca o riso das outras crianças e feridas incuráveis durante sua vida. Há também nesse romance, como no primeiro poema citado de Conceição Evaristo, o desejo de retraçar a história que foi silenciada: os anos antes e depois da guerra de secessão dos EUA. Em 2013, Chimamanda Adichie lançou o romance Americanah onde a narradora Ifemelu trata em seu blog os problemas de ser negro nos EUA. Ela questiona o que foi normalizado nas questões de cor, raça e cabelo. São vários os exemplos das personagens e a relação com seus cabelos. As entrevistas de emprego sempre são o ponto crucial para encobrir a dentidade negra e submeter-se a norma branca. Em 2015, a portuguesa de origem angolana Djamilia Pereira de Almeida publicou Esse cabelo, um livro que conta sua biografia pelo prisma de sua relação com os cabelos. É apenas quando ela não tenta mais se encaixar em padrões que ela consegue se reconectar com quem ela é de fato.
Finalmente, a emancipação do corpo passa pela questão da pele e do cabelo e não são assuntos superficiais e, sobretudo, não são uma exceção: trata-se de um tema transnacional que vem sendo tratado nos últimos 100 anos, e com mais intensidade a partir do início do século XXI. Essas narrativas funcionam como uma mensagem uníssona sobre as preocupações existenciais das autoras negras. Esse clamor na literatura negra não é dizer mais do mesmo, mas uma busca de legitimação. Ao encontrarem um espaço de onde falar, essas questões poderão se resolver mais facilmente, pois serão ditas e passarão a existir. O feminismo negro brasileiro vem articulando muitas possibilidades para discutir essas vivencias e maneiras de lidar com problemas de racismo no mundo contemporâneo. Autoras de sucesso, como a filósofa Djamila Ribeiro, que foi traduzida em francês, possibilita que novas vozes possam emergir no debate internacional de ideias e trazer respostas a problemas que não estão localizados apenas no Brasil.
Conclusão
Regina Dalcastagnè termina seus textos geralmente citando Nancy Fraser (1997), pois a intelectual analisa de maneira assertiva as duas vertentes da injustiça social: a econômica e a cultural.
Isto significa que a luta contra a injustiça inclui tanto a reivindicação pela redistribuição da riqueza como pelo reconhecimento das múltiplas expressões culturais dos grupos subalternos: o reconhecimento do valor da experiência e da manifestação desta experiência. A literatura é um espaço privilegiado para tal manifestação, pela legitimidade social que ela ainda retém. Daí a necessidade de democratizar o fazer literário – o que, no caso brasileiro, inclui a universalização do acesso às ferramentas do ofício, isto é, o saber ler e escrever. (Dalcastagnè, 2008:31)
Entretanto, nosso dever enquanto críticas literárias e acadêmicas, isto é, pessoas que detém um poder dentro de instâncias de legitimação artísticas, é de prestar atenção em não olhar essa literatura seguindo a lógica do gueto, mas sermos sensíveis a integração dessas vozes da alteridade num contexto mais amplo e inclusivo na criação da literatura brasileira contemporânea.
A autoria feminina negra não significa apenas uma mudança na identidade de gênero e étnico-racial da escritora: há uma alteração de perspectiva. Na escrita dessas autoras, a mulher negra figura como sujeito-personagem, ao invés de ser apresentada e representada pelo “outro”. Elas são simultaneamente sujeito e objeto da escrita literária, relatam a partir de uma subjetividade própria, o que é ser mulher negra na sociedade brasileira. As palavras de Conceição Evaristo (2007: 21) concluem as longas linhas desse artigo: “...A nossa escrevivência não pode ser lida como história para ninar os da casa grande e sim para acordá-los de seus sonos injustos...”.
Notas de fim
* Este artigo resulta do trabalho desenvolvido pelo projeto MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação (ERC) no quadro do Horizonte 2020, programa para a investigação e inovação da União Europeia (contrato nº 648624).
[1] Roberta Estrela D’Alva nasceu em Diadema em 1978. Formada em artes cênicas pela USP ela é a responsável por trazer a cena slam ao Brasil com a criação da Zona Autônoma da Palavra (ZAP!). A diversidade do público e dos temas tratados foi o que a atraiu, além de ser um dos raros espaços de cultura gratuitos, como registra o documentário “Slam: Voz de Levante” (2018) dirigido com Tatiana Lohmann em que retraçam a trajetória do slam, dentro e fora do Brasil, e a evolução de diversos poetas.
[2] Luiza Romão é poeta, atriz e diretora de teatro. Também formou-se em artes cênicas pela USP e frequenta os espaços do slam há dez anos. Publicou um livro de poemas em 2017, “Sangria”, em que revisita a história do Brasil sob a perspectiva do útero.
[3] Kika Sena é arte-educadora, atriz, escritora, poeta e performer. Alagoana, vive no Distrito Federal, onde faz mestrado em artes cênicas na UnB. Lançou em 2017 o seu segundo livro “Periférica”.
[4] Bell Puã é uma artista slammer nascida em Recife em 1993, representou o Brasil na copa do mundo do slam em 2018 em Paris. Suas poesias tratam sobretudo sobre o racismo. “É que dei o perdido na razão” é seu primeiro livro de poemas publicado em 2018, seguido por “Lutar é crime”, de 2019.
[5] Entrevista a Tatiana Lohmann e Roberta Estrela D’Alva : “Documentário une emoção, território e identidade para falar sobre história do slam” 22/11/18 por Paloma Vasconcelos https://ponte.org/documentario-une-emocao-territorio-e-identidade-para-falar-sobre-historia-do-slam/
[6] Conceição Evaristo é hoje uma das escritoras brasileiras mais conhecidas. Foi traduzida em diversas línguas, além de ter recebido vários prêmios por sua obra. Nascida em 1946 em Belo Horizonte, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970, onde graduou-se em letras. Trabalhou como professora da rede pública de ensino e começou a publicar na década de 1990 na revista Cadernos Negros.
[7] A escritora Miriam Alves é igualmente assistente social e professora. Nasceu em São Paulo em 1952 e é uma das fundadoras da revista Cadernos Negros, tendo publicado seu primeiro texto em 1982. Tem seus livros mais recentes publicados em 2015 e 2019.
[8] Esmeralda Ribeiro é jornalista, nascida em São Paulo em 1958. Assim como Miriam Alvez, faz parte da Geração Quilombhoje, que atua nos movimentos de combate ao racismo e na construção de uma ‘Literatura Negra’, a partir do resgate da memória e das tradições africanas e afro-brasileiras a partir da publicação dos Cadernos Negros. Possui duas obras de ficção publicadas e vários ensaios e artigos.
[9] Bianca Santana nasceu em São Paulo em 1984 e é escritora e jornalista. Seu primeiro livro, “Quando me descobri negra” (2016), nasceu a partir da reunião de crônicas e, ao analisar criticamente suas vivências, permite desconstruir uma série de preconceitos que impedem um olhar positivo da mulher negra sobre si.
[10] Tradução minha de « Lo decolonial denota, entonces, un camino de lucha continuo en el cual podemos identificar, visibilizar y alentar “lugares” de exterioridad y construcciones alternativas. » em Catherine Walsh 2009:14-15).
Bibliografia
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Para citar esse artigo
Fernanda Vilar, « À margem da margem: a TransMissão das escritoras Negras brasileiras », RITA [en ligne], n°14 : septembre 2021, mis en ligne le 23 septembre 2021. Disponible en ligne: http://www.revue-rita.com/articles/a-margem-da-margem-a-transmissao-das-escritoras-negras-brasileiras-fernanda-vilar.html