Saraus em Fortaleza: por outras semânticas do literário e do periférico
Saraus à Fortaleza: pour d’autres sémantiques du littéraire et du périphérique
Resumo
Fortaleza possui mais de dois milhões e meio de habitantes, é capital do estado do Ceará, na região Nordeste do Brasil. A cidade possui cena cultural intensa, contando com expressiva movimentação artística nas periferias. São muitos os projetos de saraus de poesia e batalhas de rap em espaços públicos abertos, como praças, tendas de circo e campos de futebol e em locais fechados, como bibliotecas, bares, cafés, livrarias etc. Os saraus literários, em geral, acontecem em diálogos com diversas outras modalidades de expressão artística, como a palhaçaria, a música, o teatro, o hip hop etc. Os saraus integram movimentos de ocupação, de resistência da vida nas periferias que se encontram esmagadas pela violência, pela força policial, pelos conflitos do tráfico de drogas, pela invisibilidade estatal e pelo preconceito a que são relegadas no cenário urbano fortalezense. Temos por objetivo neste estudo refletir acerca do modo como os saraus da periferia de Fortaleza atuam na reivindicação de visibilidade para a periferia e no desmonte de vozes elitizadas e legitimadas na cidade e no âmbito literário e como, nesse estilhaçamento de cânones e outros poderes, criam significações diversas para o periférico. Consideramos que, assim como os variados saraus existentes nas periferias de muitas cidades brasileiras, os saraus em Fortaleza agem na perspectiva de mudar a semântica do periférico: de locais de violência e de criminalidade, as periferias se transformam em lugares de cultura, de resistência e de vida.
Palavras-chave: Fortaleza; Saraus periféricos; Levante artístico-cultural.
Résumé
Capitale de l'État du Ceará, dans le nord-est brésilien, Fortaleza compte plus de deux millions et demi d'habitants. La ville a une scène culturelle intense, avec un mouvement artistique important dans les banlieues. Il existe de nombreux projets de « saraus »de poésie et des « batailles » de rap dans les espaces publics ouverts, tels que des places, des tentes de cirque et des terrains de football, mais aussi dans des lieux fermés tels que des bibliothèques, des bars, des cafés, des librairies, etc. Les soirées littéraires se déroulent, en général, en dialogue avec d'autres formes d'expression artistique, comme la clownerie, la musique, le théâtre et l’hip hop. Ces soirées de poésie s'inscrivent dans des mouvements d'occupation et de résistance dans les banlieues pauvres, étant écrasées par la violence, par la force de la police et par les conflits de trafic de drogue ; invisibles pour l’État et considérées avec maints préjugés dans le milieu urbain de Fortaleza. L'objectif de cette étude est de réfléchir sur la manière dont les « saraus »des banlieues de Fortaleza agissent pour rendre visible la périphérie et pour remettre en question des voix élitistes et légitimées dans la ville et au sein du champ littéraire. Dans cet éclatement des canons littéraires et ces configurations d’autres pouvoirs, se créent des significations différentes pour la culture de la banlieue. Nous pensons que les soirées à Fortaleza, comme dans d’autres banlieues brésiliennes pauvres, agissent dans la perspective de changer la sémantique de la périphérie : de lieux de violence et de criminalité, les périphéries se transforment en lieux de culture, de résistance et de vie.
Mots clés: Fortaleza; « Saraus » dans les banlieues; Soulèvement artistique et culturel.
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Maria Aurinívea Sousa de Assis
Professora
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.
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Reçu le 11 octobre 2020/Accepté le 12 juillet 2021
Saraus em Fortaleza: por outras semânticas do literário e do periférico
Introdução
Fortaleza possui mais de dois milhões e meio de habitantes, é a capital do estado do Ceará, na região Nordeste do Brasil. A cidade conta com cena cultural intensa e com expressiva movimentação artística nas periferias. São muitos os projetos de saraus de poesia e de batalhas de rap em espaços públicos abertos, como praças, tendas de circo e campos de futebol, e em locais fechados, como bibliotecas, bares, cafés, livrarias etc. Os saraus literários acontecem em diálogo com vários formatos de arte, por exemplo, a palhaçaria, a música, o teatro e o hip hop. Em Fortaleza, os saraus também integram ações de resistência, como as ocupações realizadas pelos movimentos dos sem-teto, e as ocupações nas escolas públicas, ocorridas fortemente no ano de 2016, contra a Proposta de Emenda Constitucional 241 – a PEC 241 – e, à época, contra o governo do presidente ilegítimo Michel Temer. Os saraus que acontecem hoje em Fortaleza constituem um sopro de resistência das vidas nas periferias, vidas esmagadas pela violência, pela força policial, pelos conflitos do tráfico de drogas, pela invisibilidade estatal e pelo preconceito ao qual são relegadas no cenário urbano fortalezense.
Nosso objetivo neste estudo é refletir como os saraus periféricos em Fortaleza atuam na reivindicação de visibilidade para a periferia, no desmonte de vozes elitizadas e legitimadas no âmbito literário e no espaço urbano, observando como, nesse estilhaçamento de cânones e outros poderes, os saraus criam significações diferentes para o periférico. Consideramos que, assim como os variados saraus existentes nas periferias de muitas cidades brasileiras, os saraus em Fortaleza agem na perspectiva de mudar a semântica do periférico: de locais de violência e de criminalidade, as periferias se transformam em lugares de cultura, de resistência e de vida.
A linguagem literária produzida pelos grupos socialmente marginalizados vale-se de novas experiências linguísticas e perfura o véu considerado sagrado das literaturas elitizadas - o que alivia a criação textual da asfixia paralisante de uma pretensa erudição. As classes populares são ensinadas a acreditar que não sabem a própria língua materna, que essa não lhes pertence e que, por isso, não poderiam mobilizá-la. Crença que, defendemos, é posta em xeque pela elaboração político-literária e popular dos saraus, nas literaturas e nas artes periféricas de modo geral. A linguagem verbal, falada e/ou escrita, torna-se ferramenta artística aproximada da mão do povo, capaz de servir de arma revolucionária.
No seu Prefácio-Manifesto ao livro Literatura marginal: talentos da escrita periférica, intitulado “Terrorismo Literário”, Ferréz oferece seu grito à chamada alta cultura, à chamada alta literatura e ao capitalismo, chutando a porta da sala de reuniões da literatura encastelada: “A capoeira não vem mais, agora reagimos com a palavra, porque pouca coisa mudou, principalmente para nós” [...] Cala a boca uma porra, agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve” (Ferréz, 2005 : 9). Se o movimento liberto na capoeira foi e continua seguindo como memória e prática de uma batalha feroz de um corpo indomesticável e combatente, hoje, essa capoeira de palavras tensiona uma área muito cara às elites, a da escrita, incomodando àqueles que sempre utilizaram a norma culta da língua como suposto objeto inatingível e que, por isso mesmo, como insígnia de distinção social.
Regina Dalcastagnè, em Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, debate sobre vozes nas literaturas atuais no Brasil. Ela menciona as escritoras e escritores que fogem aos padrões linguísticos, sociais, raciais, de gênero, entenda-se dizer, que escapam às literaturas formadas em sua maioria por homens brancos de classe média, moradores de grandes centros do país. Esse deslocamento provoca instantâneo mal-estar naqueles que possuem hegemonia em um campo ostentado como de difícil alcance. Diz Dalcastagnè:
Pensem no senhor que conserta sua geladeira, no rapaz que corta seu cabelo, na sua empregada doméstica – pessoas que certamente têm muitas histórias para contar. Agora colem o retrato deles na orelha de um livro, coloquem seus nomes em uma bela capa, pensem neles como escritores. A imagem não combina, simplesmente porque não é esse o retrato que estamos acostumados a ver, não é esse o retrato que muitos defensores da Língua e da Literatura (tudo com L maiúsculo, é claro) querem ver (Dalcastagnè, 2012: 8).
Ao escolher a palavra como território para a ação, Ferréz e tantas e tantos outros sabem que tocam em um interdito muito poderoso. A escrita periférica desmascara a farsa de que haveria uma versão do literário com L maiúsculo, capaz de ocupar, sem questionamentos e reservas, o lugar de paradigma do que haveria de ser o modo único de escrita, fazendo ruir a noção de que apenas essa maneira deveria ser valorizada. Com sua tese precisa e simples, vigorosa no movimento de implosão de antigos privilégios, essa escrita corrói, pela base, um edifício que desaba sobre seus pés. O artista periférico, produtor de cultura literária escrita e/ou oral, escancara a falácia do sistema que se organizou na ideia de que as periferias (de uma cidade, de um estado, de um país e do mundo) apenas existiriam como consumidores da cultura produzida nos grandes centros econômicos. A literatura periférica possui um papel explícito de desmontar os esquemas do modo de consumo e de produção capitalista que replicam seus mecanismos de produção-consumo na arte. A foto da motorista de ônibus ou do(a) (ex)presidiário(a) estampada nos livros recoloca a questão do que venha a ser o literário, do literário como instância móvel, relembrando da lição do literário na sua pluralidade e historicidade, obviedade temida pelos defensores daquilo que não carece (e não solicitou) de proteção.
Nesta perspectiva, a ideia de uma função para o literário, nos materiais produzidos nos contextos dos saraus, denota uma posição indubitavelmente engajada pela manutenção e pleno exercício da vida. Se em muitos contextos espaço-temporais o engajamento foi questionado como algo que poderia empobrecer a valoração do artístico na linguagem ou foi relativizado com a premissa de que todo texto, de um modo ou de outro, é engajado, comprometido que está com a palavra, nos textos que encontramos nos saraus, o engajamento é bandeira e é potência tanto política, quanto de escrita. Aliás, o político-literário é um compósito que utilizamos para nos referirmos à linguagem dos saraus com finalidades enfáticas e didáticas porque, afinal, nos saraus periféricos, a palavra é utilizada abertamente como arma política e, nessa clivagem, assume sua máxima expressão na materialização de uma palavra-performance explosiva.
Nos saraus periféricos das grandes cidades, os poemas falados ao microfone ou ritmados pela voz e outros sons no rap, ou os poemas impressos em folhetos, livros, fanzines, cartazes e lambe-lambes que colorem as paredes cinzas da urbe, tornam-se todos recursos e revólveres na luta contra a desigualdade e a violência que assolam a periferia.
Em “Saraus da Periferia de São Paulo: poesia entre tragos, silêncios e aplausos”, Lucía Teninna mapeia alguns dos mais conhecidos saraus da cidade de São Paulo (o Sarau da Cooperifa, o Sarau do Binho e o Sarau da Brasa), e discute como eles atuam na ressignificação do espaço da periferia. A autora debate como, a partir dos saraus, a periferia ganha nova concepção, e seus habitantes passam a ter a fala e o corpo valorizados e dissociados da semântica do crime. Os moradores dos bairros periféricos, com os saraus, passam a ser relacionados aos universos da arte, da cultura, da poesia e da leitura.
Lucía Teninna aponta um trecho de Nosso manifesto, intitulado “A elite treme”, do Coletivo Cultural Poesia na Brasa, no qual o uso de palavras do universo do crime nos poemas surge como estratégia que, segundo a autora, realiza um duplo deslocamento. Diz Teninna:
“A elite treme” dá conta de uma operação de ressignificação comum nas poesias dos poetas periféricos: o trânsito do sistema semântico habitual associado ao crime para o universo da literatura e a denúncia da violência por partes dos agentes que geralmente se apresentam como vítimas. Trata-se de uma operação dupla: a desterritorialização das operações criminosas e a ressignificação das identidades criminalizadas (Teninna, 2013: 17).
A operação à qual se refere Teninna, ao analisar a atitude do Coletivo Cultural Poesia na Brasa, trata-se, portanto, de um enfoque que, embora se pratique de modos distintos em culturas e contextos variados brasileiros, é semelhante nos múltiplos saraus e ações cooperativas periféricas. É a operação da guerra contra signos que desumanizam e validam violências que criam uma ponte semântica sem desvios entre periferia e crime e a favor de um conjunto sígnico que construa uma via direta entre periferia e arte. O modo como os saraus atuam nesse movimento de sabotagem dessa linha de violências simbólicas e, em seus múltiplos desdobramentos, de violências físicas, é que nos interessa para ler algumas nuances de Fortaleza.
I. O boom dos saraus e a resistência cultural na periferia de Fortaleza.
De acordo com participantes dos coletivos artísticos, houve o que se pode chamar de o boom dos saraus em Fortaleza, depois da chacina do Curió, ou chacina da Messejana, em 2015, ocorrida na área da Grande Messejana que engloba o referido bairro e seu entorno. A chacina ocorreu quando um grupo de quarenta e quatro policiais, na noite entre os dias 11 e 12 de novembro, matou onze jovens e deixou mais sete pessoas feridas. A ação policial foi uma retaliação pela morte de um integrante da polícia. Esses jovens foram pinçados aleatoriamente, sendo todos do sexo masculino, vítimas de um país assolado por uma força policial ostensiva que ajuda a manter o clima de insegurança e violência nas periferias brasileiras.
Em 2016, quatro meses após a chacina, os coletivos de audiovisuais Nigéria, Zóio e Voz e Vez das Comunidades lançaram o documentário Onze que narra, com base no ponto de vista da favela, o massacre ocorrido no Curió. O discurso veiculado por certa mídia e por uma parcela das autoridades policiais consistia em apresentar esses jovens ligados à criminalidade. O argumento, contudo, não se sustenta, uma vez que o fato de rapazes supostamente possuírem antecedentes criminais ou estarem envolvidos com drogas não seria, em qualquer dimensão, justificativa para a matança estatal. A perspectiva do documentário enfatiza como os jovens, sem quaisquer antecedentes criminais ou relação com tráfico de entorpecentes, foram alvos de uma política estadual e nacional que se vale da força e do abuso de poder nas favelas.
Os “onze” jovens, destacados como um número e como anônimos para a grande mídia são, no discurso de Onze, no entanto, vistos de perto em suas singularidades. O documentário, desse modo, age na contramão das narrativas que normalmente os tornam invisíveis por meio do anonimato. Ao afastar o jovem do elemento amortecedor da estatística, a narrativa documental enxerga as subjetividades que precisam ser tratadas com um olhar de dentro, proximidade esta capaz de devolver a humanidade que cada vida nomeada[1] possui, realizando a ressignificação de identidades criminalizadas, para utilizar a formulação, já referida, de Teninna.
Tomamos conhecimento de alguns dos saraus que ocorrem nas periferias de Fortaleza, e eles são muitos, como, por exemplo: o Sarau da B1, no bairro do Jangurussu; o Viva Palavra, no bairro da Serrinha; o Sarau da Okupação, no bairro do Antônio Bezerra; o Sarau do Papoco, que também conta com a biblioteca comunitária Papoco de Ideias, encabeçada por Ana Argentina Castro, nos bairros Pici/Pan Americano; o Sarau Bate Palmas, organizado por nomes como o de Bete Augusta e Parahyba de Medeiros, no bairro do Conjunto Palmeiras; o Sarau da Filó, no Jangurussu; o Sarau Negra Bonifácia, nos bairros do Pirambu/Colônia; o Sarau Quintal Cultural, no bairro do Siqueira; o Corpo-sem-órgãos: Sarau Rizoma, que é itinerante, acontece no bairro do Conjunto Ceará II ou em outros espaços, como praças públicas da cidade; o Servilost, no bairro Serviluz. Há também outros coletivos que ajudam a promover os saraus, como o Movimento de Hip Hop Nós por Nós.
O Sarau da Okupação realiza-se no Antônio Bezerra, na Rua do Amor e seu organizador utiliza o pseudônimo Batikum. Ele disponibiliza sua própria casa como suporte para as atividades. O sarau possui grande parte das atividades voltadas para o público infantil. Além da poesia e do microfone aberto, estão presentes malabaristas e palhaços, para convidar e incentivar a permanência das crianças, das residências próximas ou das que estiverem passando pelo local, nas atividades. Há, também, apresentação de músicos autorais que se voluntariam para contribuir com a realização das atividades à noite. Batikum realiza exposição na rua, utilizando as paredes e calçadas de sua residência para exibir os desenhos, além de oferecer pipoca às crianças e mudas de plantas aos participantes do evento.
Este é um dos exemplos da atmosfera de partilha que é criada na cena dos saraus. Acreditamos que essa ambiência é capaz de elaborar uma nova semântica para o bairro, conforme discutimos, e proporcionar momentos de lazer para a comunidade local e público em geral, especialmente, para as crianças do bairro que recebem elementos para elaborarem seus repertórios cultural e lúdico, afastados do mundo da violência e do crime.
É comum ouvirmos dizer que os jovens no Brasil não gostam de ler, não gostam de literatura. Indagamos, no entanto, na linha do que nos propõe Márcia Abreu, no livro Cultura Letrada: literatura e leitura (2006): será que o jovem não gosta de ler ou não gosta de ler o que a escola recomenda?
A literatura na escola é, muitas vezes, erroneamente apresentada como algo difícil. Nem sempre com 13, 15 ou 17 anos um aluno de escola pública no Brasil tem afinidade com os chamados clássicos da literatura. Como apontam os estudos, isso se deve ao conjunto de questões sociais existentes no país, à pobreza que esses jovens vivenciam, à ineficiência da educação pública que, em diversos casos, não forma leitores para os tipos de textos considerados eruditos. E há, ainda, o tratamento dado aos chamados clássicos que, muitas vezes, não são questionados nas escolas com relação aos lugares de poder que ocupam. A literatura na escola, nesse contexto, portanto, é passível de se mostrar distante e sem sentido. A ideia tradicionalista de literatura, no entanto, é fortemente questionada nos saraus que põem em xeque o discurso soberano do cânone. É comum encontrar releituras de clássicos nos poemas de participantes de saraus que dinamizam e brincam com as estruturas dos textos famosos.
Vários modos de realização do literário, diversas maneiras de produção que fazem sentido de variadas maneiras para as pessoas envolvidas, múltiplos conceitos de literatura que estão relacionados aos usos, aos modos como um texto é encarado, seus contextos de produção e recepção circulam de forma viva e criativa nos saraus da Okupação, assim como nos demais. O sarau dá um sentido à literatura. Neles, tem-se a experiência da literatura na rua, aglutinada aos cartazes, à publicidade, ao som das buzinas, aos lambe-lambes, às vidas marginalizadas que, em geral, estão bem distantes do imaginário do literário ensinado na escola. Os saraus exibem jovens que, sim, gostam de ler, escrevem, performam, gritam e atualizam os conceitos de literário em um ciclo subversivo e consciente.
O que vemos nos saraus, como o da Okupação, desmonta a visão do jovem como aquele que não gosta de literatura, pois, o que há são jovens que amam a palavra, que acreditam nela, que criam no improviso poemas e raps. Emboladas e cocos, ritmos musicais comuns no Nordeste, muitas vezes estão nos saraus misturados ao rap, criando uma composição musical única no contexto brasileiro.
Nos saraus, através da literatura oral potencializada pela performance ao microfone, encontramos a possibilidade de escutarmos a voz daqueles que são silenciados. Os encontros utilizam a dinâmica do microfone aberto: a qualquer pessoa é permitido se pronunciar, o que confere visibilidade aos sujeitos invisíveis da cidade, proporcionando-lhes o direito de falar: falar de amor em tempos de ódio, falar olho no olho em tempos de redes sociais virtuais.
Em Rede de afetos: práticas de re-existências poéticas na cidade de Fortaleza (2019), Francisco Rômulo do Nascimento Silva, em dissertação de mestrado em Sociologia defendida em 18 de fevereiro de 2019, realiza uma pesquisa socioantropológica que investiga aspectos dos encontros-saraus, da poesia de “busão” e dos “Poetas de lugar nenhum”. O estudioso dedica uma seção do estudo para refletir acerca da significação do microfone aberto como palavra que se faz aberta, acessível a todas e todos. Essa dinâmica, abre os saraus à espontaneidade e à imprevisibilidade, possibilitando aos participantes o direito à cidadania, o direito de existir, pois, se o corpo, diz Rômulo Silva (2009 : 52), “lugar central de dominação”, silenciado e fragmentado tornava-se inexistente, o corpo que fala transmuta-se em ato de sobrevivência e existência. “A palavra aberta são corpos em combate” (Silva, 2009: 52), conforme destaca o pesquisador em uma leitura poético-política sobre escritas-potências periféricas na Fortaleza contemporânea.
É essa política-poética de promoção da igualdade que seduz os sujeitos e populariza os saraus. Numa sociedade injusta, numa cidade que cria distância, num país atual assolado por tantas e diversas formas de ilegalidade, crime e descaso, os microfones abertos dos saraus são uma possibilidade de grito. Há muitas vozes e falas silenciadas no contexto da cidade de Fortaleza e do Brasil atual. Nos saraus, crianças, mulheres e homens sabem do poder transformador da palavra: denúncia e reescrita da história e criação de realidades possíveis. Ocorre uma releitura da compreensão do que seja o literário, do conceito de arte e dos seus agentes. Escritas periféricas feitas por quem vive na periferia e/ou por todos aqueles que são parceiros na luta da periferia, a fim de apresentá-la, de denunciar o poder exercido contra ela e de redesenhá-la com as tintas da criatividade e da autonomia artístico-intelectual.
Em diálogo com as reflexões de Teninna, ao discutirmos sobre os saraus da periferia de Fortaleza, observamos o modo como os bairros periféricos dominados pelo discurso da criminalização têm sido redesenhados pela arte, pelo potencial transformador da cultura, pela preocupação com a formação educacional, artístico-cultural da criança e do jovem da periferia. Percebe-se que os saraus em Fortaleza explodem com um desejo semelhante de transformar as realidades violentas das periferias e de ressignificar seus espaços mediante uma luta sem disseminação de ódio, mas com um embate artístico-cultural que é, sim, de revolta, agressivo e contundente.
As bibliotecas comunitárias nas periferias de Fortaleza existem e resistem organicamente com o movimento de saraus periféricos da capital. Em 31 de março de 2018, foi criada a biblioteca comunitária Casavoa - Livro Livre Curió, no bairro do Curió, por Talles Azigon, intelectual e escritor periférico. O projeto de Talles Azigon consiste em abrigar na biblioteca atividades como cursos, rodas de leitura e bate-papos com a participação de convidados voluntários, músicos, escritores, professores, para promover a formação leitora e cidadã, incentivar o acesso a espaços de lazer e cultura. A biblioteca é mantida com recursos do próprio idealizador e pela doação de trabalhos e recursos de parceiros.
Existem, também, outras bibliotecas comunitárias muito expressivas na capital, como a Papoco de Ideias. O trabalho de conclusão de curso de Ruth Paulina Rios de Souza, intitulado Fortaleza Literária: uma leitura do espaço a partir dos espaços de leitura, defendida no dia 02 de dezembro de 2019, no Departamento de Geografia, na Universidade Federal do Ceará, aborda questões da biblioteca comunitária Papoco de Ideias e soma-se como uma palavra aliada na divulgação da leitura e no acesso à cultura. A pesquisadora explica como a biblioteca, criada por volta do ano de 2016 e mantida pela família Castro, foi estabelecida com o intuito de ajudar a sanar problemas do entorno que, com o crescimento populacional, testemunhou o alastramento da violência. A biblioteca é o único equipamento cultural do bairro que, ao oferecer saraus, oficinas, sessões de cinema, rodas de leitura, toma para si o papel imprescindível de transformar a semântica local por meio da formação leitora e artística das crianças e jovens.
Em seu estudo, Ruth Paulino Rios de Souza mapeia a existência de, pelo menos, outras quinze bibliotecas comunitárias na capital[2]. Ao observarmos as práticas sócio- culturais, periféricas e colaborativas que proliferam, acreditamos que tais iniciativas de bibliotecas, publicações independentes a baixo custo, coletivos autônomos audiovisuais, tendem a se multiplicar ainda mais em Fortaleza dadas as necessidades de resistência no Ceará e no Brasil (luta contra a violência, contra assassinatos cotidianos da população negra e periférica, o desemprego, a fome, etc.), bem como pela potência criativa das vozes que agitam o estado de coisas na cidade.
O Sarau da B1, organizado pelos agitadores de pensamento Nina Rizzi, Samuel Denker e Carlos Melo, alcança, em especial, um público de adultos e jovens, havendo um forte protagonismo das mulheres. Acontece na Rua Bulevar 1, no Jangurussu, próximo a bares e lanchonetes, em uma praça pequena e acolhedora do bairro. É ali, ao ar livre, embaixo das árvores que os participantes confraternizam, manifestam e lutam por suas vidas, cantando rap, lendo/performando ao microfone seus incômodos. Leem, sobretudo, poemas de autoria própria, que versam sobre o cotidiano da periferia, denunciam a violência perpetrada contra as populações periféricas, abordam aspectos ligados às minorias, às lutas, ao esgarçamento dos cânones literários, à criatividade, à solidariedade, ao afeto. É um sarau marcante no contexto periférico fortalezense.
Jangu Livre é o nome da fanzine que divulga o material dos participantes do Sarau da B1 e de demais interessados, fazendo uma referência ao bairro Jangurussu, onde ocorre o Sarau, e nos possibilita pensar em uma paródia sonora-conceitual com o filme Django Livre, de Quentin Tarantino. Jangu Livre é uma proposta criativa-incendiária, dá seu punhado de contribuição para a democratização da leitura e da escrita, para o escambo do literário no país. Composto por colagens, exposições fotográficas, desenhos, letras de músicas, escritas literárias, é um projeto de publicação alternativa que muito acrescenta ao processo de formação de leitores críticos - uma das preocupações centrais que mobilizam os saraus de periferia.
O uso das palavras fanzine e zine no feminino, utilizada pela primeira vez, de acordo com Rômulo Silva (2019), por Fernanda Meireles, em 2016, na fanzine intitulada Sobre HOJE: uma zine sobre o que não queremos esquecer, é escolhida como ato político, de uma transformação no/pelo feminino. Participantes do Sarau da B1, e de outros saraus, utilizam tais palavras no feminino, daí assumirmos, nestas breves reflexões acerca da reelaboração de sentidos da literatura e da periferia promovida nos saraus, a revolução semântica que a mudança de gênero da palavra agrega.
Considerando que nos saraus periféricos temos, sobretudo, literatura falada, publicada na garganta, as fanzines tornam-se interessantes materiais de divulgação e de acesso a um pouco do que vemos e ouvimos no cotidiano das ruas de Fortaleza. Colhemos dois textos poéticos das edições três e quatro de Jangu Livre, o que nos permite confeccionar alguns pensares sobre a literatura insubmissa e afiada, suas matérias de luta e dobras.
Na edição três de Jangu Livre, publicada em julho de 2017, coordenada por Nina Rizzi e Samuel Denker, temos a poema[3] “Poste”, de Jesuana Prado, no qual o engajamento político explícito é chave na elaboração poética da escritora. Diz o poema:
POSTE
Ninguém merece ser amarrado a um poste, a um sentimento, a um ser.
Ninguém merece ser linchado até que doa, até que morra, miseravelmente.
Ninguém merece. Não! Ninguém!
Enquanto isso os postes estão aí, sendo açoite só para alguns, sendo mais que postes, terrivelmente.
(Prado, 2017 : s.p.)
No poema, Jesuana Prado singulariza o poste, objeto suscetível de ser visto como corriqueiro dentro da paisagem de uma cidade. O poste, no entanto, passa a ser o ponto no qual a voz e o olho do poema se posicionam para observar as dificuldades ao redor. Estabelecendo pontes diretas com eventos de violência no país, amplamente divulgados pelas mídias e pelas redes sociais, o poste atualiza o passado hediondo dos troncos e dos pelourinhos. O poema é elaborado como um material que denuncia e que escolhe olhar a periferia por um ângulo singular de dentro, registrando uma memória de dor e de perplexidade, funcionando, também, como sintaxe de resistência.
É, também, o que nos propõe Teninna (2013) quando, ao analisar poemas de poetas dos saraus paulistanos, argumenta que:
Não são as cenas de violência, mas os detalhes enquanto estética, que autorizam essas vozes. O mecanismo de ressignificação do ser periférico por meio da poesia não é, portanto, exclusivamente temático; há também um estilo comum que o articula: o esforço pelo detalhe, a periferia narrada com lupa (Teninna, 2013: 16).
Embora o tema de Jesuana Prado seja o da violência, o que torna o poema especial e particular, distanciando-se de outros autores capazes de escrever sobre periferia e violência, é a habilidade de capturar o micro e movimentar-se de dentro para fora. Em outras palavras, como uma moradora da periferia, a escrita funciona juntamente com a capacidade de ver de perto, unindo delicadeza e precisão ao observar “com lupa” o que para outros seria invisível.
O lugar de fala do(a) escritor(a) confere autoridade diferenciada ao dito, pois como nos lembra Regina Dalcastagnè (2012), esta palavra está etimologicamente ligada à autoria. A periferia reclama a autoria-autoridade de comunicar a si mesma e a troca de mãos e de corpos que expressam diz-nos sobre a luta pela legitimidade do falar em próprio nome que passa a ser requerida em massa. Só os invisíveis ou inexistentes precisariam de alguém que falasse por eles. Então, a ideia do escritor como aquele que fala pelo(a) outro(a) é uma premissa central combatida pela intelectualidade periférica. Falar é, como nos ensina Djamila Ribeiro (2017), existir. Portanto, é imprescindível e urgente que a produção artístico-intelectual de minorias como a das mulheres negras ou a da periférica rasgue as estruturas misóginas, sociais, políticas que as querem afônicas.
Outra poema, este sem título, de Bruna Sonast, publicado na quarta edição da fanzine, de setembro de 2017, coordenada por Nina Rizzi, Samuel Denker e Carlos Melo, transita entre sensações e transmutações de significações para as referências que se tem, para aquilo possível de se ver:
,“quebrar muros não é difícil”
e te digo
que risadas espontâneas num levam
muros,
nem recriminações,
só EMO(a)tividades...risadas espontâneas são um Berlim
espatifado,
só o riso, sorriso vergado,sem ser só,
no interior...e te digo
que um poema feliz,
daqueles que se sabe de cor,
talvez seja essa solidãodesarmada,
debochada,
compartilhadano abraço de um des(re)conhecido
e te digo
que os muros quebrarame espalharam mil pedaço(s)
de cada um de n(ós),
(Sonast, 2017: s/p)
A voz poética trata a respeito da esperança e da transformação. Muros estilhaçados, uma referência simbólica e revolucionária ao muro de Berlim posto abaixo. O riso e a felicidade são os elementos que quebram os muros, que destroem a solidão e vencem a distância para o encontro com o outro. Os corpos fragmentam-se positivamente, “mil pedaços” de cada um é o que possibilita a partilha, o abraço. É um ponto de vista acerca da luta na periferia que é desenhado, com delicadeza, afeto e coragem. Os traços de dor, de dureza e choque, que muitas vezes vemos nos escritos dos poetas periféricos, dividem espaço com textos que cantam a possibilidade de uma existência leve-esperançosa e livre.
O arranjo visual do poema cria um jogo ao iniciar e finalizar com vírgulas, como se o poema, assim como um aposto ou um trecho verbal, se localizasse entre duas metades de um período. Como um muro: aposto entre duas metades que poderiam ser uma coisa só. Seus versos curtos e espaçados conferem ritmo ágil ao poema, versos leves por entre os quais a alegria surge. E, sim, o poema de Sonast se localiza em um “entre”, em uma fissura de incômodo, em uma fresta aberta pelo desejo de. É, visualmente, e sua impressão no papel da fanzine nos ajuda nesse sentido perceptível, como uma linha de muro, visto de cima, ressignificado em seus aparatos simbólicos, pois se espatifa.
Esses dois momentos de escritas, pinçados da fazine Jangu Livre e do que ocorre atualmente em Fortaleza, são experiências que nos auxiliam a pensar a cena recente, rápida, criativa, intensa e simultânea da capital cearense, cenário que se elabora como “um verdadeiro levante”, como disse Parahyba de Medeiros, um dos organizadores do Sarau Bate Palmas, na abertura do VII Encontro Nacional de Educação Social, ocorrido na Universidade Federal do Ceará, no dia 12 de outubro de 2017.
Os saraus periféricos na capital do Ceará compõem um movimento gigantesco que acompanha a onda dos acontecimentos nas periferias de todo o país. Os participantes são corajosos guerrilheiros urbanos que doam seu tempo, seus trabalhos artísticos e, muitas vezes, também, seus recursos financeiros em prol dessa transformação. Além disso, observamos que há uma circulação dos participantes entre os diversos grupos, sem existir rivalidade ou disputa entre saraus e coletivos artísticos, mas um entrelaçamento de sujeitos e de propostas na realização de um trabalho cooperativo, tecendo uma rede de paz e de solidariedade.
O trabalho dos saraus, como mencionamos, permite renovada perspectiva sobre a matéria literária e a periferia. Esta, normalmente, é tratada em diversas produções cinematográficas, midiáticas, teóricas ou com ênfase na criminalidade, ou de modo idealizado, o que, sabemos, constitui igualmente uma violência. Para refletir sobre a periferia, é preciso estar longe dos estereótipos que a grande mídia cria em torno desses espaços. Não se deve depreciar, nem romantizar a vida e os moradores da favela, transformando-os em espetáculo. Enquanto a pobreza e a má distribuição de renda no nosso país existirem, é preciso que a favela grite.
Consideramos que o ano de 2017 foi um período muito importante para a vida dos saraus periféricos, contando com alguns episódios marcantes. Um deles foi o lançamento do I Encontro de Saraus do Ceará[4], que aconteceu ao longo do dia 19 de agosto, no bairro do Conjunto Ceará. No Encontro, foi discutida a tentativa da Prefeitura de Fortaleza de regulamentar os saraus e rolezinhos. A proposta da prefeitura foi feita pouco antes do I Encontro de Saraus, cuja data de realização já havia sido definida. A data do I Encontro de Saraus, assim, acabou por ser bastante estratégica, uma vez que o encontro aproveitou para expressar seu forte NÃO aos mecanismos de controle contra os jovens e contra a população que reside nos bairros de periferia. O secretário de cultura da prefeitura, à época, estava presente e, neste dia, apenas ouviu os participantes do Encontro.
A resistência à tentativa de regulamentação dos saraus e rolezinhos de Fortaleza é, por sua vez, o que consideramos como o segundo momento bastante significativo do referido ano. Foi escrita uma nota de repúdio, assinada por Argentina Castro, mas cuja autoria e posicionamento foram, também, assumidos pelos coletivos de saraus. Na nota, foi rejeitada, vigorosa e poeticamente como não poderia deixar de ser, qualquer formato, qualquer controle das manifestações artístico-culturais pela prefeitura da cidade, pois, “regulamentar” é o recurso do qual o Estado comumente se vale para criminalizar as produções e o livre pensamento dos sujeitos periféricos. Diz o começo desse repúdio- manifesto:
Supostos Senhores Gestores do Poder Público, quando foi que batemos em sua porta? Como ousam, agora, depois de tantos passos dados de forma livre, autônoma e autogerida, chegarem à nossa porta que, genuinamente, é a rua, e nos querer ditar regras, nos impor visitas do braço armado do Estado, como se bandidos fôssemos? Somos todos artistas, poetas, poetisas, escritores, passadores de chapéus, andarilhos de ruas e vielas, pensadores das favelas, semeadores e alcançadores daquilo que vocês não alcançam. Não precisamos de equipe de redução de danos, porque nós somos fruto de danos históricos, sabemos lidar com eles melhor que ninguém. O que fazemos é reduzir os danos causados pela truculência e desrespeito do Estado em nós e em nossos irmãos pretos, pobres e periféricos.
(Nota de repúdio contra a tentativa de criminalização de saraus e rolezinhos, 2017).
A intensidade com que a periferia se mobilizou fez com que a prefeitura recuasse em relação à proposta de estabelecer regras para os saraus e rolezinhos na capital cearense. Tal enfrentamento à Prefeitura na figura do representante municipal, tal como a realização do evento e o repúdio dos participantes de coletivos foi um demonstrativo do potencial de organização e de força de todos os que fazem saraus, que produzem cultura e arte nas periferias de Fortaleza. Antes do Encontro, uma manifestação de contestação foi realizada na praça do Benfica, famoso bairro boêmio e universitário da capital. Local emblemático que funciona na cidade como lugar de aglutinação, de manifestações e de resistência.Desde o I Encontro de Saraus do Ceará, acontecem os Encontros e Pós- Encontros de Saraus e Rolezinhos. O 2º Pós-Encontro aconteceu no dia 18 de novembro de 2017, no Circo Quintal Cultural Siqueira, cujo objetivo principal foi manifestar contra a onda conservadora de censura artística que vinha (e ainda continua) se alastrando por todo o Brasil.O texto da Nota de Repúdio sinaliza para o trabalho em prol da mudança semântica da periferia: se o Estado os vê como criminosos e bandidos, as vozes sabem que são poetas, artistas e pensadores das favelas e é com esse discurso, o segundo, que os intelectuais periféricos estão armados. Não é necessário que outros falem em lugar da periferia, pois esta possui um arsenal artístico-intelectual muito largo e único. Falar amparado nesse ponto de vista é transmutar uma dinâmica de séculos de opressão e silenciamento, é ferir conceitos tão caros à ciência, como os de intelectual e de escritor/a.
Conclusão
O debate que aqui realizamos intencionou trazer uma reflexão possível, uma interpretação do cenário efervescente dos saraus que temos hoje na cidade de Fortaleza, nas praças e ruas, onde são ressignificados os sentidos do poético e do periférico que responde ao mundo com combate e beleza. Os nomes, recortes, citações são uma tentativa de pensar literatura como um território que se contesta no Brasil atual, como problematiza Daslcastagnè (2012).É comum nos indagarem se acreditamos que os saraus na periferia são hábeis para mudar a presente conjuntura brasileira. Respondemos, sem hesitar, que sim! Se existe algo capaz de transformar o estado de coisas no Brasil contemporâneo é a guerra cultural das periferias. Com seu armamento de vozes de rappers e poetas, de malabaristas e palhaços, escritores e leitores, os saraus criam uma onda verbal-sonora-corpórea contestatória, cujo alcance não conseguimos prever, mas que é visível nos corpos de protagonistas autogeridos, que falam por si e são capazes de formar literária e criticamente crianças e jovens nas favelas brasileiras.
A poesia, a alegria, a festa são os instrumentos utilizados para o exercício da liberdade e para a superação das violências diversas. No poema publicado na garganta ou que grita cravado no papel-corpo da fanzine, no NÃO declarado, na performance sobre aborto, no teatro que denuncia a violência policial, na brincadeira, na palhaçaria, em todas as manifestações artísticas, os saraus na periferia da cidade tematizam a coragem, o enfrentamento político, a emancipação dos sujeitos periféricos e a promoção da delicadeza e da vida.
Os saraus da periferia remexem o terreno dos cânones literários, questionam a respeito de quem está apto a falar, desnuda equívocos dos mais variados discursos excludentes, mobiliza e cria espólio cultural a favor da luta periférica. Eles são potência por tudo que põem em questão, revolvendo todo o terreno da chamada “teoria literária” e dos padrões brancos e elitistas que determinavam quem poderia escrever. E, considerando o alcance que as vozes periféricas possuem na cena atual, cremos tratar-se de uma faceta madura e forte que trabalha pela demolição do estado de opressões vigente. Fazer literatura nos saraus da periferia é (re)escrever a história por uma perspectiva negligenciada e silenciada há séculos, e criar, na escolha consciente deste ângulo, não é pouco, é uma revolução com a capacidade de fazer implodir o monumento literário e político, e roê-lo por dentro, fazendo-o desabar sobre sua própria estrutura.
Notas de fim
[1] O nome de cada um dos jovens assassinados na chacina do Curió e visibilizados no documentário são: Antônio Alisson Inácio Cardoso, Jardel Lima dos Santos, Alef Souza Cavalcante, Renayson Girão da Silva, Patrício João Pinho Leite, Jandson Alexandre de Sousa, Francisco Elenildo Pereira Chagas, Valmir Ferreira da Conceição, Pedro Alcântara Barroso Filho, Marcelo da Silva Mendes, Marcelo da Silva Pereira. A Exposição Nomes, ocorrida de 05 de outubro ao dia 20 de novembro de 2019, no Sobrado Dr. José Lourenço, no centro da cidade de Fortaleza, conferiu, igualmente, particularidade e existência a cada uma das vítimas da Chacina do Curió, como o próprio nome conferido à Exposição sinaliza.
[2] As bibliotecas que Ruth Paulina Rios de Souza mapeou e introduziu em seu estudo, além da Papoco de Ideias, são: Biblioteca Comunitária Casa Camboa, Biblioteca Comunitária Casavoa, Biblioteca Comunitária Castelo de Leitura, Biblioteca Comunitária Criança Feliz, Biblioteca Comunitária do Conjunto Ceará, Biblioteca Comunitária Famílias Reunidas, Biblioteca Comunitária Garagemteca da Filó, Biblioteca Comunitária Jardim Literário, Biblioteca Comunitária Leonidas Magalhães, Biblioteca Comunitária Literateca, Biblioteca Comunitária Mundo Jovem, Biblioteca Comunitária Poeta Vitor Ribeiro, Biblioteca Comunitária Quintal Cultural, Biblioteca Comunitária Sorriso da Criança, Biblioteca Comunitária Tenda da Leitura.
[3] A poema, segundo Nina Rizzi, é a chave mais importante de seu pensamento como escritora, tradutora e intelectual, é peça na linha de desmontagem de vozes sociais patriarcais. Ver: (Rizzi, 2020)
[4] O Encontro de Saraus do Ceará teve a segunda edição em 28 de julho, no Curió, e a terceira edição no dia 20 de julho de 2019, no bairro Granja Portugal.
Bibliografia
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Prado Jesuana (2017). Poste. In: Nina Rizzi, Samuel Denker, Carlos Melo (Coord.). Jangu Livre, nº 3. Fortaleza.
Ribeiro Djamila (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; Justificando.
Silva Francisco Rômulo do Nascimento (2019). Rede de afetos: práticas de re-existências poéticas na cidade de Fortaleza. Universidade Federal do Ceará (Dissertação de Mestrado).
Rizzi Nina (2020). "A poema: um caminho para alcançar a própria voz e outras tantas". Suplemento Pernambuco, Edição nº 177, Novembro.
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Souza Ruth Paulina Rios de (2019). Fortaleza literária: uma leitura do espaço a partir dos espaços de leitura. Fortaleza: UFC.
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Nota de repúdio contra a tentativa de regulamentação de saraus e rolezinhos (2017), Fortaleza, agosto, 2017. [URL: https://www.facebook.com/totalrepudioaregulamentacaodossarauserolezinhos/. Acesso 5 de agosto de 2017].
Pour citer cet article
Maria Aurinívea Sousa de Assis, « Saraus em Fortaleza: por outras semânticas do literário e do periférico », RITA [en ligne], n°14 : septembre 2021, mis en ligne le 23 septembre 2021. Disponible en ligne http://www.revue-rita.com/articles/saraus-em-fortaleza-por-outras-semanticas-do-literario-e-do-periferico.html